domingo, 15 de dezembro de 2013

Hoje estou muito cansada. Por isso vou-vos dar música.
Mas não é uma qualquer.
Hoje comi castanhas e, talvez mais importante, cheirei-as.
E lembrei-me desta letra maravilhosa escrita pelo Sr. Ary dos Santos, musicada pelo Sr. Paulo de Carvalho e cantada pelo deus do fado Dom Carlos do Carmo.

Silêncio que se vai ler Fado.

Na Praça da Figueira,
ou no Jardim da Estrela,
num fogareiro aceso é que ele arde.
Ao canto do Outono,à esquina do Inverno,
o homem das castanhas é eterno.
Não tem eira nem beira, nem guarida,
e apregoa como um desafio.
É um cartucho pardo a sua vida,
e, se não mata a fome, mata o frio.
Um carro que se empurra,
um chapéu esburacado,
no peito uma castanha que não arde.
Tem a chuva nos olhos e tem o ar cansado
o homem que apregoa ao fim da tarde.
Ao pé dum candeeiro acaba o dia,
voz rouca com o travo da pobreza.
Apregoa pedaços de alegria,
e à noite vai dormir com a tristeza.
Quem quer quentes e boas, quentinhas?
A estalarem cinzentas, na brasa.
Quem quer quentes e boas, quentinhas?
Quem compra leva mais calor p'ra casa.
A mágoa que transporta a miséria ambulante,
passeia na cidade o dia inteiro.
É como se empurrasse o Outono diante;
é como se empurrasse o nevoeiro.
Quem sabe a desventura do seu fado?
Quem olha para o homem das castanhas?
Nunca ninguém pensou que ali ao lado
ardem no fogareiro dores tamanhas.
Quem quer quentes e boas, quentinhas?
A estalarem cinzentas, na brasa.
Quem quer quentes e boas, quentinhas?
Quem compra leva mais amor p'ra casa.

domingo, 8 de dezembro de 2013

O Carteirista do 28.



Lisboa é terra de gente honesta. Por outro lado tem ladrões, pedintes de todos os estratos económicos, piratas, assaltantes e contadores do conto do vigário.
De todos eles, a minha subespécie favorita é a dos carteiristas do Eléctrico 28.
O carteirista do Eléctrico 28 não é um profissional qualquer. Não assalta o trabalhador português honesto que usa este meio de transporte para se deslocar para o local de trabalho. É um ofício com um público-alvo bem definido: o turista deslumbrado que, de máquina-fotográfica a tiracolo, circula entre as dez da manhã e as sete da tarde, de boca aberta e bolsinha prática, a olhar atentamente para as maravilhas da zona histórica da cidade.
Também não trabalha sozinho. É necessária a cooperação de uma equipa, de no mínimo três elementos, para executar com brio a tarefa.
Ora, os carteiristas entram no eléctrico na Graça e, quando chegam ao Castelo, já têm o dia ganho.
Sempre agasalhados com casacos cheios de bolsos, seja Agosto ou Janeiro, falam alto e discutem a missão em Português perante os ouvidos atentos do Lisboeta que enfia mais a cabeça no livro ou começa a enviar mensagens no telemóvel. Quem será a vítima? A francesinha de franja e oculinhos com o seu namoradinho pálido, que vão aos beijinhos em pé lá ao fundo? Ou o alemão camarão gordinho com meias brancas e sandálias Birkenstock ali a meio? O alemão. O alemão vai com a pochete meia aberta. Está mais a jeito.
Aproximam-se devagar do pobre. Um deles com delicadeza de pluma enfia os dedos dentro da mala e recorrendo a artes de adivinhação passadas de boca em boca desde os tempos do Zé do Telhado, vai directamente à carteira do dinheiro e tira-a para fora. Anuncia em voz alta a sua conquista e, na paragem seguinte, ala que se faz tarde.
O turista alemão dará conta muito mais à frente quando um português corajoso, depois de se certificar que o bando assaltante ficou há duas paragens atrás, o avisar.
O carteirista do Eléctrico quase não folga. Quando muito, muda de ares. Por exemplo, no dia  13 de Maio, qualquer um pode levar uma mala cheia de notas aberta no eléctrico. Já em Fátima, é melhor fechar a carteira a sete chaves. O carteirista vai religiosamente à Cova da Iria vigiar a carteira dos fiéis.
Apanho muitas vezes este eléctrico. Normalmente porque me dá jeito. Outras vezes, só para descobrir mais um detalhe bonito desta cidade encantadora. Muitas vezes sou prendada com a actuação do carteirista e fico sempre maravilhada com a sua arte. É verdade que no fundo o carteirista é um ladrão. Mas que o 28 não seria a mesma coisa sem ele, é outra verdade incontornável.

domingo, 1 de dezembro de 2013

Entre o parolo e o bimbo.




São duas menos um quarto. Ou serão um quarto para as duas?
Depende da zona do país em que estivermos. O fuso horário é muito relativo e, às vezes, susceptível de nos causar uma sensação de jet-lag avassaladora.
 Se estivermos em Lisboa, falta definitivamente um quarto de hora para qualquer hora à vossa escolha.
Quando cá cheguei achei estes Lisboetas um bocado parolos na maneira de dizer as coisas. Para além da pronúncia e das expressões, há os palavrões. Não são palavrões mal-educados. São antes termos trocados que querem dizer exactamente a mesma coisa. Hoje já digo com eles. E digo mais, nem é assim uma maneira de falar tão bimba.
As diferenças de dizer enriqueceram-me o falar, mas há algumas que ainda me soam dissonantes no ouvido e me provocam um sorriso. Ou uma gargalhada.
Vamos a exemplos.
No ramo do calçado temos a clássica dicotomia sapatilha/ténis. Onde eu nasci, sapatilha é para calçar e ténis é um desporto. Em Lisboa calçam-se ténis. Sendo que no singular se diz teni. O que eu gosto de ouvir nas sapatarias: “Posso experimentar o teni que está ali na montra?”.  E lá vão eles todos contentes com um teni em cada pé jogar ténis. Ou futebol, ou andebol, ou correr. Ou.
Na área da culinária é um fartote.
Os tachos tampam-se com testos e os bifes fritam-se num estrugido na sertã. Certo?
Em Lisboa não. Cada tacho tem a sua tampa e os bifes refogam-se na frigideira.
 Com um dente de alho, sal e pimenta a gosto, em todo o país.
À tarde come-se uma lancheira ou um chou acompanhados de um fino numa esplanada da Baixa. Come. Mas não sem antes levar com o ar estupefacto do empregado de mesa que, num esforço de entendimento nos diz: “Je ne parle pas Français. Only in English, please.” Então explicamos. Queremos uma merenda ou um rim e uma imperial. E, sempre vou dizendo que esta coisa de chamar rim a um bolo, a mim me faz confusão. Bem sei que é pela semelhança de forma. Mas Chou é que lembra um bolinho recheado com creme de pasteleiro e chocolate por cima. Que delícia.
Dizer a um Lisboeta que não vale um chícharo não o ofende. Ele não sabe o que é. O que é muito frustrante, porque dizer que não vale um feijão-frade não causa em mim o alívio de uma ofensa bem metida. 
Em matéria capilar também há sérias diferenças. Para prender o cabelo num puxinho, usa-se um puxo e ajuda-se com um travessão. Na Beira.
Em Lisboa prende-se o cabelo num rabo-de cavalo, com um elástico e, se for preciso, mete-se um gancho.
No guarda-vestidos guardam-se os vestidos pendurados nas cruzetas. Nos guarda-fatos guardam-se os fatos pendurados em cabides.
E mais palavras há que tornam os sítios onde as escutamos especiais e que se descontextualizam longe da terra onde nasceram. É por isso que este texto não fica fechado. Não lhe meto um aloquete. Perdão. Um cadeado.