domingo, 27 de abril de 2014

Meu herói nacional.

Ó Capitão, meu Capitão,

E agora o que fazemos ao estado a que chegámos?

E agora o que fazemos aos cravos murchos nos canos das armas enferrujadas?
Agora que tanto de ti precisamos para arrancares de Santarém e tomares o Terreiro do Paço.

Agora é outra vez a hora.

Agora.

Quem sairia do Terreiro do Paço, que já estava ganho, e entraria sozinho na Ribeira das Naus com uma granada no bolso para se fazer explodir caso fosse preciso um mártir e encararia os tanques da velha senhora?
Quem agora se recusaria a disparar sobre ti?
Quem subiria ao Carmo e cercaria o quartel?
Quem se recusaria a forçar o Caetano a sair por ser só um capitão?
Quem faria a revolução bonita sem querer nada para si?

Agora.

Agora andas em todas as bocas e põem-te coroas de cravos em monumentos. Esquecidos que não querias glórias nem poder. Querias paz e democracia.

Querias que mais nenhum rapaz fosse carne para canhão em África e que mais ninguém tivesse medo. Querias liberdade.
E, olha, nada foi em vão. Agora posso pôr-me em cima desta mesa imaginária e dizer que precisamos de outro Salgueiro Maia para avançar sem medo e sem ganância.


Ó Capitão, meu Capitão.

domingo, 13 de abril de 2014

A morte saiu à rua.


A nossa revolução de Abril quase não fez correr sangue. Quase.

Quase. Cinco letras de palavra que mudam a história toda.

Quase. Assim se borrou a pintura.

Numa rua tão bonita como a António Maria Cardoso ali ao Chiado logo havia de acontecer o mais feio momento do dia 25. O de Abril de 1974.

A morte também saiu à rua num dia assim. Naquele lugar onde a PIDE-DGS se sediara para esquadrinhar e torturar a vida dos cidadãos perigosos e manter a tranquilidade e a ordem.

Concentrados nos movimentos no Carmo e na Praça do Comércio, os militares revoltosos descuraram a vigilância à sede nacional da PIDE. Durante grande parte do dia, os agentes da polícia política entraram e saíram do edifício. Numa fúria de esconder e queimar as vergonhas e desonras que haviam praticado de modo consciente e impune durante três décadas.

Mas o povo não se esqueceu. Foi entrando na Rua António Maria Cardoso e ocupou a rua. E arremessou palavras de ordem de saída aos pides.


16:15

Um pide com uma pistola na mão à janela. Dispara sobre a multidão.

João Guilherme Gomes Arruda. Vinte anos. Estudante. Morto.

Veio então o Exército. Chegou a Marinha. Controlaram as entradas na rua suja de sangue. Mas não controlaram o edifício. Nem conseguiram tirar dali as pessoas.

20:00

O Major Silva Pais, director da PIDE, manda disparar para o ar.
Vários pides com pistolas na mão às janelas. Disparam para baixo. Disparam sobre a multidão.

Fernando Carvalho Gesteira. Dezoito anos. Morto.

Fernando Luís Barreira dos Reis. Vinte e quatro anos. Soldado. Morto.

José James Harteley Barnetto. Trinta e sete anos. Morto.

Duas dezenas de feridos.

A PIDE terminava como surgira: assassinando.

Depois disto a sede foi tomada. Chegou auxílio. Vieram ambulâncias. Mas a morte já tinha chegado antes.

A Revolução de Abril pode contar-se numa sequência de actos de heróis que deram o corpo ao manifesto e às balas. Dos militares dispostos a morrer pela mudança, com cravos na mão e democracia na cabeça.

E se vos relato os momentos mais trágicos daquele dia, é para que se lembrem.

Há uma coisa a que os franceses chamam turismo da memória. Defendem que se deve mostrar as maldades dos humanos para que ninguém esqueça. Para que ninguém repita.

No dia 25 de Abril de 1980, um grupo de cidadãos colocou na parede da sede da PIDE-DGS uma placa com o nome dos que haviam morrido cinco anos antes.


Há cerca de dez anos o infame edifício foi transformado num condomínio de luxo.

A placa da memória foi retirada e reposta já várias vezes. A última vez que lá passei, há poucos dias, não estava lá.

Li algures que a Câmara Municipal de Lisboa apresentou queixa à Polícia Judiciária pelo desaparecimento. Li também que iria haver uma nova placa.

Somos um povo de memória curta para o bem e para o mal. Desculpamos facilmente e deitamos para trás das costas. Por isso me parece importante que a placa lá esteja. Quero lá saber que desfeie o prédio ou que incomode alguns que passam.

Quero lá a placa para que haja um registo público daquilo que não se deve repetir.


domingo, 6 de abril de 2014

O jardim da Celeste.






Abril é o mês dos cheiros.

Na minha aldeia cheira a domingo de Ramos. Cheira a mimosas e aleluias a crescer onde lhes aprouver. Cheira a domingo de Páscoa.

Em Lisboa cheira a sol a bater suave no rio, cheira a flores a nascer nas varandas e a humidade a sair das paredes.

Para mim cheira a aniversários dos meus e a revolução.

Nasci depois do dia 25 de Abril de 74. Cheguei a Lisboa 18 anos depois da revolução ter acontecido. Um dos primeiros sítios onde fui foi ao Largo do Carmo. Só para viver aquele dia na minha imaginação. Só porque aquele dia deve ter sido dos dias mais bonitos. 

Por isso este Abril vou escrever sobre a revolução.

Porque aconteceu em Lisboa. Porque me comove. Porque sim.


Da iconografia de Abril, o cravo vermelho é o meu favorito.

Nos canos das espingardas, nas mãos dos manifestantes, na mão do menino do poster pendurado aqui na sala, na lapela do casaco do meu pai.

Depois daquele dia, o cravo vermelho nunca mais foi uma flor só simples ou só bonita. Desde o sangue dos soldados mortos além mar para protegerem o império a símbolo de esperança, o cravo vermelho correu mundo em representação do país da revolução bonita.

Daquilo que eu gosto mais é da espontaneidade do gesto que fez do cravo O Cravo.

Naquele dia 25 de Abril de 1974, Celeste Caeiro não trabalhou. O patrão mandou-a embora porque na rádio diziam que estava a acontecer uma revolução e era melhor não abrir o estabelecimento. E que levasse o molho de cravos que estava no armazém. Assim não murchavam.
E ela assim fez.

Celeste subia a Rua do Carmo com o seu jardim debaixo do braço quando viu os chaimites e os soldados. Não teve medo. Teve pena daqueles rapazes ali parados que lhe deram os bons-dias e lhe disseram que estavam ali desde as três da manhã. Para fazer a revolução. Para instaurar a democracia.

Democracia? O que seria?


Pediram-lhe cigarros. Cigarros não tinha. Nunca fumou. Mas tinha cravos. Cravos vermelhos em molho.
Soltou o primeiro e estendeu-o ao soldado. O soldado pegou nele e enfiou-o no cano da espingarda. Celeste deu mais cravos a mais soldados. Todos seguiram o gesto do primeiro. Celeste ficou sem cravos antes de chegar a meio da rua.

E mais cravos vermelhos foram surgindo nas mãos das pessoas, nos canos das armas, vindos não se sabe bem de onde. À medida que a revolução avançava, Lisboa ficava florida de vermelho.

Mas o primeiro.

O primeiro veio da mão da Celeste.