domingo, 22 de fevereiro de 2015

Cafés da manhã.


De manhã é uma corrida desenfreada para ver quem chega a horas ao emprego. Dentro dos carros, no comboio, no eléctrico, no autocarro e, os mais atrasados, no táxi, toda a gente quer estar sentado à secretária do seu local de trabalho quando na rádio se ouvir o fatídico bip das nove horas da manhã. Dão-se os bons dias aos colegas, ligam-se os computadores, abrem-se as portas e o labor começa a todo o gás.

Até às dez.

Às dez da manhã é a hora da sagrada bica. O lisboeta, supersticioso por natureza, ruma ao seu café da esquina para cumprir o ritual diário sem o qual o dia de trabalho não poderá correr bem.

Eu e os meus colegas também temos o nosso café da esquina. Que não fica numa esquina. Fica no princípio da Rua da Penha de França. É o Olha Que Dois, o café mais simpático da freguesia.

Dispostos a socorrer todas as nossas vontades caprichosas, recebem-nos com um sorriso honesto e tratam-nos pelo nome. Não há dia frio que não não aqueça quando entramos a porta e cumprimentamos o Sr. Paulo, o Sr. Ariel, o Sr. Ricardo ou o Sr. Delfim. E, antes de chegarmos à mesa, já a máquina está a tirar a nossa bica. Nem precisamos de pedir, eles já sabem há anos o que queremos.

Se a Câmara Municipal de Lisboa criasse uma placa de distinção designando “Café tipicamente alfacinha”, o Olha que Dois tinha uma na parede. Preencheria todos os requisitos exigidos para tal.

Tem os velhotes das redondezas sentados nas mesas a ler o Correio da Manhã.
Tem o Correio da Manhã. E A Bola e o Record.
Tem a televisão ligada no programa do Goucha.
Os funcionários são doentes do Benfica, excepto o Sr. Ariel, que é do Porto, e a clientela é maioritariamente do Sporting.
Todas as conversas desaguam em futebol.
Tem um cão a vaguear em frente à porta todo o dia.

São gente de bem, que não negam comida a quem sabem que não a pode pagar. Empregados e patrões confundem-se numa espécie de família que nos recebe com paciência, café e gargalhadas.

Na altura do Natal vão levar ao sitio onde trabalho Bolos-Reis gigantes e vinho do Porto. Como se o agradecimento tivesse que ser deles. A nós, clientes satisfeitos, sempre apressados e primorosamente atendidos. É também no Natal que ali se vendem os melhores sonhos de Lisboa. É vê-los chegar quentes e açucarados e desaparecer em minutos.

O Olha que Dois é o meu café das manhãs há mais de dez anos. Faz parte do meu dia. Se não for lá, a minha rotina laboral, desestabiliza. Sou como qualquer habitante desta cidade, que a meio da manhã tem uma chávena de café quentinho à sua espera em cima do balcão do sitio do costume. Daquele sitio onde, quando não têm troco para a nota de vinte euros, nos dizem com toda a confiança: “Deixe estar, paga amanhã”.



domingo, 15 de fevereiro de 2015

Fechou a loja.

Quando comprei esta casa não comprei só esta casa. Comprei um bocadinho da loja de decoração que fica aqui por baixo. A loja da Ana, aqui no rés-de-chão à esquerda, quem sai a porta do prédio. E isto é tão verdade que o meu soalho é o tecto dela.

E foi pelo tecto dela que a nossa amizade começou.

Quando comprei a casa, existiam cá umas cinquenta divisões assoalhadas mais uns cubículos escuros que eu resolvi transformar num razoável T2. Vá, num T2+1, como se usa dizer agora nos folhetos das imobiliárias. Para tal fiz umas obras demoradas e atribuladas, passíveis de causarem neste edifício pombalino tremores semelhantes aos do terramoto de 1755. Bocadinhos de parede atravessaram o soalho e foram partindo jarras de cristal, lascando guarda-jóias de porcelana e sujando velas perfumadas na loja da Ana. Objectos recolhidos pacientemente e que eu lhe comprei a um preço simbólico. Em jeito de indemnização.

Depois.

Depois começaram as longas conversas à porta da loja. As últimas cuscuvilhices da rua. As gargalhadas e os desabafos dos dias. Quando chegava a casa depois do trabalho, antes de subir, passava pela loja.

Passados uns tempos tinhamos uma espécie de duplex. As filhas da Ana vinham cá para casa fazer os trabalhos da escola e quando eu ia de férias a Ana alimentava-me a gata. A Ana guardava os rissóis que comprava à D. Zulmira no meu congelador até à hora de ir embora e abria a porta ao senhor das contagens da Epal, quando eu não estava.

A loja da Ana era a loja mais bonita cá da rua. Cheia de velas e sabonetes com perfumes de frutas exóticas e cheiros a flores que nascem em terras do lado de lá do planeta. O odor maravilhoso subia pelas escadas do prédio e entrava-me em casa. Com caixinhas-de-música, espanta-espíritos, bules coloridos e lanternas rendilhadas, enchia a vista de quem passava e as prateleiras cá de casa.

A Ana resistiu até à semana passada. Mesmo tendo sempre clientes, compravam cada vez menos. Esta maldita crise. Este maldito IVA. Esta maldita vida difícil que nos faz contar os trocos, deixa-nos sem orçamento para os objectos bonitos e cheirosos. Aqueles que também são essenciais para tornar os dias mais simpáticos. E a Ana resolveu fechar a loja antes que a loja a fechasse a ela.

Por toda a Lisboa as lojas do comércio tradicional fecham. Da drogaria à mercearia, tudo vai encerrando por falta de balanço. É a liquidação total. São os clientes a mudar de ramo rumo ao centro comercial.

A loja fechou e agora está um compartimento às escuras com papel pardo a tapar a montra debaixo da minha casa. Aqui no andar de cima já não cheira tão bem, mas por cá continuam os objectos bonitos que lhe comprei ou que ela me deu. A Ana vai ter uma vida nova que me parece que a vai fazer ainda mais feliz do que a loja. Assim espero.

Um dia destes ela telefona-me a contar.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

De braços abertos.






Cristo Rei nunca vais baixar os braços? Há anos a tentar abraçar esta Lisboa que te pisca o olho sempre que o Tejo se distrai. Há anos à espera que o Tejo seque e Lisboa venha a correr para se entrelaçar em ti.

Tudo começou em 1934. O Cardeal Cerejeira foi ao Rio de Janeiro e mirou o Cristo Redentor no cimo do Corcovado. Logo pensou para os seus paramentos que tinha que ter um igual em Portugal. Só precisava de um motivo.

O motivo chegou com a Segunda Guerra Mundial. Se Portugal não fosse à guerra, erigir-se-ia um Cristo tão alto e grandioso que poderia ser visto por Deus lá de cima do céu.

Salazar, não quis violar a amizade com Inglaterra e estava mais interessado na vocação ultramarina do Império. Não iriamos guerrear. E o milagre lá se deu.

Em 1949 lançou-se a primeira pedra no Pragal, 113 metros acima do nível do Tejo. Dez anos mais tarde, foi inaugurado no dia de Pentecostes. Vieram representantes católicos de todas as terras portuguesas de aquém e d'além mar e até veio a imagem da Nossa Senhora de Fátima para a grande consagração da estátua e de Portugal ao Sagrado Coração de Jesus.

Setenta e cinco metros de pórtico projectado pelo arquitecto António Lino, sobre os quais se ergue um Cristo de 28 metros, obra do escultor Francisco Franco de Sousa. De costas para o mar. De braços abertos para a capital.

Mal abriu os olhos viu Lisboa. Mal abriu os olhos, cobiçou-a e pecou. E Deus lá do alto condenou-o à pedra eterna. De braços estendidos ao desamparo para todo o sempre. De olhos postos no romance entre a linda Lisboa e o seu rival Tejo para a eternidade.

Mesmo estando do lado de lá do rio, os lisboetas reclamam ter tanto direito a chamar o Cristo Rei de seu, como os habitantes da margem sul. Muito criticado por se tratar de uma obra do Estado Novo e do mal afamado Cardeal Cerejeira, por ser um mono a quebrar a linha do horizonte, a verdade é que a vista do outro lado não seria a mesma sem ele. Como poderiamos viver sem aquele ser solitário que nos conforta com a sua constante presença incansavelmente disposto a consolar-nos das nossas tristezas? Erguer o olhar para o Cristo Rei é erguer o olhar para um velho amigo que nos entende.

Mas quem consola o Cristo Rei? Quem vai ao seu encontro e lhe baixa os braços e lhe diz para descansar?

Talvez um dia Deus se canse de o castigar e desça lá de cima, lhe dê o mais esperado xi-coração da história da humanidade e lhe perdoe. Nesse dia, espero que ele não se vá embora. Espero que ele estenda os braços a Lisboa, lhe pisque o olho e lhe pergunte: “ Queres espreitar a vista daqui de cima?”