domingo, 31 de maio de 2015

Há caracóis.




Chegaram os caracóis. As portas dos restaurantes e tascas vão exibindo sacos de rede amarelos cheios do bicharoco pendurados à entrada. São letreiros vivos do petisco mais aguardado do tempo quente.


Na minha Beira Alta a malta não acha piada nenhuma. Fala-se em caracóis e as línguas soltam-se para fora da boca em sinal de agonia. Segue-se um sonoro “Que nojo.” e um abanar de cabeça de incompreensão. Quando telefono à minha mãe e digo que vou comer caracóis, nota-se sempre no “Que porcaria” que deixa escapar, um tom de voz conformado seguido de um suspiro à andamos a criar uma filha para acabar nisto.


Mas em Lisboa não. O caracol caiu no gosto do lisboeta. O Verão da capital não começa antes do molusco cá chegar. E se eles se atrasam, estica-se o Inverno mais um bocadinho. É impensável deixar o calor entrar na cidade sem que em cada montra das casas de comes e bebes alfacinhas haja um anúncio simples e directo: há caracóis.


E é ver as travessas e os pires a chegarem às mesas das esplanadas. Com o aroma de orégãos e cebola não há alfacinha que não comece a salivar. E é ver as mesas cheias de cascas e guardanapos enrodilhados. E é ver as imperiais a chegarem e a esvaziarem-se em segundos. E é ver o pão torrado com manteiga a chegar quentinho e a ser devorado.


E é ver quem é que é esquisito e quem é que é corajoso. Os corajosos chupam o caracol directamente da concha. Os esquisitos puxam com um palito, às vezes fazem uma careta de náusea, mas comem na mesma. É que o sabor delicioso do caracol é diametralmente oposto ao seu aspecto.


A caracolada é sempre acompanhada com boa disposição. Nunca vi ninguém com ar pesaroso atacar um pires de caracóis. Os amigos juntam-se à volta do pitéu e só falam de assuntos divertidos. O caracol não é para coisas sérias. É para boas conversas regadas com cerveja e contentamento.

Chegaram os caracóis. É altura do tremoço e o amendoim descansarem. É altura de deixar o calor entrar nos nossos dias. Telefonar aos amigos e dizer: Vai uma caracolada?

domingo, 24 de maio de 2015

As canções de Lisboa.


Nem só com fado se canta Lisboa. Lisboa canta-se de outras cantigas tristes e contagiadas de solidão que, sabe-se lá porquê, nos enchem a alma de calor e companhia. Quanto mais oiço cantigas sobre esta cidade mais se me forma uma certeza certa: sobre Lisboa não se cantam felicidades.


Sobre Lisboa cantam-se paisagens e angústias, vai-se ao bas fond do espírito e do corpo, esperam-se futuros desgraçados, desencontram-se os corações e cortam-se pulsos com navalhas. Enganam-se os amantes, desvendam-se segredos assombrados, ou então guardam-se para sempre.


Não vão em cantigas. Sempre que se canta Lisboa, cantam-se lágrimas.


E poderão estas cantigas ser de prescrição médica para curar corações partidos? Poderão os afastamentos que carregam socorrer as almas aflitas? Poderá esta cidade ser tão ardilosa amada que nos fere e nós, mesmo assim, só a queremos a ela por par? A resposta é óbvia. Sim. A Lisboa que se canta é criatura empática que nos espeta uma faca, mas fá-lo com jeitinho. Depois pega-nos ao colo e dá um beijinho na ferida para passar mais depressa. E a verdade é que ajuda. A Lisboa que se canta é boa companhia para a solidão. Para o abandono da carne vazia. Para os acordares estremunhados espreitando pela fresta até ser dia.


Na próxima sexta-feira vai acontecer um concerto daqueles dos meus sonhos. No Auditório Olga Cadaval em Sintra o Jorge Palma e o Sérgio Godinho vão cantar juntos. E eu vou estar lá com as letras a fazerem comichão na ponta da língua e o coração a bater ao ritmo das melodias. E quero que eles cantem todas. Que se aguentem ali no palco até que as vozes se esgotem e as cordas das guitarras se gastem.


Mas isto é pedir demais. Então façamos um ponto e escolhamos um assunto: Lisboa.

“Lisboa que amanhece” e “A canção de Lisboa” são gémeas falsas. Cantigas de solidão e tristeza, que nos golpeiam o coração e o acalentam ao mesmo tempo. Cantigas mais vadias que o fado. Cantigas com personagens solitárias e noctívagas que, quando o dia acorda, se misturam na multidão tendo a cidade como única companhia. Das tais cantigas que o médico devia prescrever. Porque os seus autores, alquimistas de palavras e melodias, as compuseram para nos fazer sentir que temos sempre Lisboa por companhia.


Por isso, se não tocarem mais nada, que toquem estas duas. Estas duas cantigas que tão bem relatam Lisboa. Que nos cantam ao ouvido a essência lisboeta. Que nos matam e que nos ressuscitam. Estas duas que ecoam uma cidade inteira.

domingo, 17 de maio de 2015

A espiga.








Todos os anos é uma surpresa. Uma bela quinta-feira a cheirar a Verão e a manga-curta, saio à rua e por todo o lado andam pessoas a vender ramos de flores. E Lisboa fica ainda mais bonita e mais cheirosa. Enfeitada de pequenos ramos dourados com salpicos vermelhos.


É o Dia da Espiga. Em muitas cidades do Ribatejo, do Alentejo ou nas redondezas do Tejo, a vida suspende-se. Quarenta dias contados a partir do domingo de Páscoa é quinta-feira da Ascensão, feriado e dia santo de guarda. Diz-se que é o dia em que mundo pára e que “há uma hora em que os pássaros não vão aos ninhos, as águas dos ribeiros não correm, o leite não coalha e o pão não leveda”. As pessoas vão ao campo apanhar flores para fazer o ramo que as protegerá o ano inteiro.


Espigas para garantir o pão.
 Malmequeres que trarão ouro e prata.
Papoilas para abonar amor e vida.
Ramos de oliveira para o azeite a paz e a luz.
Videiras para bom vinho e alegrias.
E alecrim para ter forças e saúde.


Tudo isto atado com uma corda e depois guardado atrás da porta à espera do substituto do ano que vem. E assim se faz a espiga.


Mas em Lisboa a história é outra. Não há papoilas nem videiras nos jardins. A Espiga chega em carrinhas, já em ramos atados e sai para as ruas em cestos nas mãos de vendedores. E é vê-los a vender às raparigas esperançosas de um ano próspero e amoroso. E é vê-los a vender às senhoras que desejam ver comida à mesa todo o ano lá em casa. E é vê-los a circular pelas mãos das lisboetas como promessas. Pactos que ficam entre a compradora e a espiga. Um euro e cinquenta cêntimos de alento. Um alento que se põe atrás da porta e em breve estará seco. Mas não importa. Porque o que conta é a intenção. Durante uma quinta-feira inteira Lisboa fica simples e camponesa. De flor na orelha e ar trigueiro


Para surtir efeito tem que ser dado. Nem que seja na batota do compras o meu que eu compro o teu com as colegas de trabalho. E que bom que é voltar para casa de ramo de flores do campo na mão. Encaixá-lo no prego atrás da porta e dizer: lembra-te do que prometeste.

domingo, 10 de maio de 2015

O marido.




Dizem que de Espanha não vem bom casamento. Dizem, mas não é verdade. Lisboa casou com um espanhol e ganhou uma luz lendária que os poetas e os filósofos tentam entender sem nunca conseguirem.


Tal como aprendemos na escola, o Tejo nasce em Espanha na Serra de Albarracín. Mal nasce, faz-se ao caminho. A viagem é longa e Lisboa é cidade bela e cobiçada que não pode estar muito tempo sozinha. Num itinerário de mais de 1000 Km, corre depressa sem nunca desviar o olhar. E bem que cidades e aldeias formosas o podem chamar que ele não pára. Constroem-lhe barragens e pontes, assomam albufeiras e serras, mas a força das águas é superior e há-de vir dar ao Terreiro do Paço nem que para isso tenha que chover.


Lisboa sem o Tejo seria uma mulher seca e infeliz. O Tejo sem Lisboa seria um homem errante, um rio sem leito nem lugar para desaguar. Esta cidade não é de terra firme. Tem água nas suas entranhas. Água que quando se enfurece a abalroa. O Tejo transborda com ciúmes desses fadistas que tentam levar Lisboa com cantigas. Mas Lisboa é cidade apaixonada e perdoa sempre. E o Tejo com remorsos recolhe-se nas suas margens e volta a ser o braço que a sustém.


Pois o Tejo, quando está calmo, é um braço protector. Foi ele quem primeiro albergou as caravelas que fizeram de Lisboa o centro do mundo. Foi ele quem as conduziu ao mar das incertezas e as acolheu quando regressaram a cheirar a terras distantes e cheias de ouro para enfeitar a cidade. É ele quem abre as portas da capital aos cruzeiros que entram por aí perfumados e cheios de ouro para comprarem memórias da cidade enfeitada. É ele quem segura os cacilheiros que enchem a cidade de gente pelas manhãs e a esvaziam à tardinha.


Dizemos que amamos Lisboa, mas a verdade é que o que amamos é este casamento perfeito de cidade e rio. Este reflexo da cidade nas águas que se traduz nesta luz que nos ilumina em azul singular. E não importa se Lisboa escolheu para marido um rio nascido em Espanha. O Tejo, quando aqui chegou requereu logo dupla-nacionalidade. Porque é aqui que ele repousa a fazer conchinha com Lisboa, enquanto ela lhe explica ao ouvido o que quer dizer a palavra saudade.

domingo, 3 de maio de 2015

A1.








Desde pequena que me lembro de ouvir o meu pai dizer: “O que gosto mais de Lisboa é de ver a placa que tem escrito: A1 Norte”.


Quando vim para cá morar, passei a adorar aquela placa também. Era para mim uma libertação. Aí ia eu rumo às minhas pessoas, aos meus sítios, à minha terra. No entanto, e como seria de esperar, em breve me encantei por esta cidade e fiquei com a alma dividida. Ou melhor, fiquei exactamente como aquela canção do Jorge Palma que diz que “tenho duas almas em guerra e sei que nenhuma vai ganhar”.


É verdade que, para quem cá não mora e vem cá só de vez em quando para ver a bola, ou a filha, Lisboa é uma cidade tão confusa que pode até ser violenta. A grande quantidade de semáforos, as filas de trânsito, as passadeiras cheias de gente, as avenidas muito largas e as ruas demasiado estreitas. As pessoas que passam por nós sem nos ver. Os rostos cansados. As corridas para o autocarro. Os inúmeros autocarros e as linhas do Metro. Os carteiristas, os malabaristas dos semáforos, os taxistas refilões, as buzinadelas e os encontrões. A poluição, as ruas sujas, os sem-abrigo, os pedintes e os loucos que vão pelas ruas a falar sozinhos.


Lisboa aos olhos de quem cá não mora anda sempre depressa demais, sempre atrasada sem chegar a nenhum lado. Sempre tarde para descansar. E quando descansa, descansa à pressa, porque há muita coisa para fazer e a vida corre corre e eu tenho que a apanhar.


Mas quem cá mora.
Quem cá mora anda neste ritmo rápido e não o sente. Move-se naturalmente a alta velocidade. Sente-se tanto peixe na água como quem mora em águas mais calmas. Faz parte desta paisagem que passa depressa e acha normal. Acha que os semáforos são muito lentos, que os autocarros são poucos e dá à buzina porque quer passar. Conversa com os taxistas, topa os carteiristas, não olha para as pessoas na rua porque vai na sua vida e, por vezes, dá por si a falar sozinho.


Mas às vezes.
Mas às vezes precisamos de travar a cidade que circula dentro de nós e rumar ao nosso outro sitio. E é por isso que a placa que tem escrito “A1 Norte” continua a ser uma das minhas coisas preferidas de Lisboa. Mesmo que quando passe por ela eu lhe segrede baixinho: Até já.