domingo, 21 de junho de 2015

António.









Meu querido António,

"Tu estás sempre ausente e não te conseguem alcançar."


Quando se nasce estrela não há nada que o contrarie. Nem mesmo a morte. E é por isso que tu és uma estrela que brilha em todas as cores da paleta cromática. E é por isso que sempre que venho aqui tentar escrever sobre ti, me sinto tão travada. Como escrever sobre alguém cuja genialidade é tão cristalina, cuja obra é tão transparente? Como escrever sobre o cantor que expôs a sua alma sem embaraços nas letras, na voz e nas músicas? Como?


Parece-me inglório tentar registar em poucas linhas. Parece-me até desnecessário. Tu és as tuas canções. Não encontro dentro de mim melhor explicação para esta dificuldade. Cada vez que toco no teclado penso: talvez devesse copiar uma qualquer letra dele e pronto. Depois dizer:

Este é o António Variações, de todas as personalidades afamadas deste país, a de maior variedade de cores e de sons. A mais autêntica e sofisticada. Um campesino urbano. Uma portugalidade sem vergonhas de se mostrar e amodernar. Incontornável. Algures entre Braga e Nova Iorque.


Vou então evitar factos históricos e citações e falar-te de mim e de ti. Daquele dia em que te vi de pijama no Passeio dos Alegres do Júlio Isidro. Eu tinha seis anos e fiquei fascinada. A canção chamava-se “Toma o comprimido”, mas isso eu só soube anos mais tarde. O que eu soube naquela hora foi que gostava daquele tipo barbudo de voz encantadoramente estridente e que dançava da forma mais esquisita que eu já tinha visto.


Quando dei por mim andava no carro com o meu pai a pedir para ele sintonizar o rádio na música daquele rapaz que cantava aquela do “estou bem onde não estou”.
Uma aparição televisiva tua era um pára-tudo-que-eu-quero-ouvir. Que eu me lembre, fui tua fã desde o primeiro dia em que te vi. Foste a minha primeira estrela.


Por isso, quando morreste daquela doença estranha de que ninguém ainda falava e que os meus pais ainda não sabiam explicar muito bem, pelo menos a uma criança de 8 anos, partiste-me o coração. E porque é que ele morreu se cantava tão bem? E porque é que queimaram as coisas dele? Como se chamava a doença que ele tinha?


Tu dizes que todos nós temos a Amália na voz, mas na minha voz não é a Amália que canta. És tu. Tu foste a minha primeira discografia completa. Um presente de aniversário dos meus pais em formato LP que me acompanhou por toda a adolescência e que está ali arrumada e estimada no móvel. Ia crescendo contigo e descobrindo novas camadas nas tuas letras. Novos tons na tua voz. Consolos cúmplices nas emoções que fui conhecendo.


E o que me chateia ouvir dizer que se tu não tivesses morrido tinhas sido uma grande cena. Tu és uma grande cena. Tu és a cena e o cenário. Tu criaste a tua obra completa.
E o que me chateia ouvir dizer que tu eras um grande maluco. Tu que tinhas uma cabeça sã e sabias bem o que querias. Querias encontrar a tua forma e o teu lugar.


Por estas coisas, meu querido António, já não te sintonizo no carro do meu pai. Levo antes as tuas músicas na cabeça ou na pen nas viagens que faço na vida. Levo-te nos phones por esta Lisboa onde te tornaste um astro e onde morreste na noite de 13 de Junho de 1984. A noite do outro António da cidade.

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