O morador de um prédio pombalino
é um alfacinha esforçado. Todos os dias sobe e desce escadas para chegar ao seu
lar. Quando o Marquês de Pombal mandou construir os edifícios que lhe
imortalizam o nome, pensou no lisboeta como um valente alpinista. Os elevadores
não estavam na moda na altura. Ora em madeira, ora em lioz, mais largas ou mais
estreitas, as escadas são o lugar comum dos moradores. O espaço público dentro de
casa.
De patamar em patamar revelam-se
pequenos segredos das vidas quase privadas de quem os habita. Pela escadaria
acima, escapam inconfidências. A vizinha do 1.º dto está sempre a ouvir a mesma
música. Uma música triste. Deve andar deprimida. A do 2º esq.º já está a fazer
o jantar. E como eu gosto de passar à porta dela a esta hora. A comida dela tem
um cheiro quase igual ao da comida da minha avó. Se eu fechar os olhos volto
atrás para um tempo em que os jantares de domingo eram à volta de uma mesa
cheia de delícias dentro de uma casa onde agora não mora ninguém. No 3.º
direito mora-se quase no silêncio. Quebrado às quartas-feiras pelo som do
aspirador que a porta não veda. Já no 3º esquerdo, a televisão está sempre
ligada a espalhar noticias e pela frincha da porta passa o cheiro dos cigarros
que quem lá vive fuma ininterruptos.
Pelas escadas dos prédios
ouvem-se pedidos de ajuda. Do gato que faz chantagem emocional do lado de
dentro da porta porque não gosta de passar o dia sozinho. Do louco que passa o
dia a dizer que o matam. Do casal que está na mesma discussão há trinta anos e não se lembra porque é que aquilo começou mas já não sabe viver de outra maneira.
Pelas escadas dos prédios
cumprem-se rotinas. Do rapaz que desce apressado todas as manhãs e que sobe
lentamente lá mais para o fim do dia. Da senhora dos perfumes adocicados e
saltos agulha que passa devagarinho por cada degrau por volta da hora de
almoço. Da Maria, com três anos, que vem todas as manhãs pela mão do pai para
casa da avó que mora lá para o 4.º andar. Conta os degraus na subida. Ao fim do
dia desce a cantar. Daquela visita tardia que vem todas as quintas-feiras ao 2º
direito. Da louca que circula para cima e para baixo todas as noites.
Pelas escadas dos prédios
fantasiam-se as vidas do lado de dentro das portas. Recolhem-se indícios pelos
sons e pelos cheiros. Supõem-se humores pelos desenhos dos tapetes de entrada.
Julgam-se desleixos pelo guarda-chuva esquecido no patamar há mais de um mês.
Pequenos pedaços da vida dos vizinhos que, por muito que se cosam, deixam
sempre buracos por preencher.
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