domingo, 26 de outubro de 2014

A Portela.







Um dos meus sítios mágicos de Lisboa é o Aeroporto Internacional de Lisboa, mais conhecido por Aeroporto da Portela. Pelo-me por dar lá um saltinho. E não tem que ser para viajar.

Aquele emaranhado de gente que chega ou parte ou espera tem sobre mim um fascínio misterioso. Tudo ali é temporário. Ninguém permanece.

Chegadas.
Chegam em grandes molhos para passar férias, para fazer grandes negócios, para trabalhar, para regressar a casa. Uns com a alegria escancarada no rosto. Com roupas estranhas, tranças no cabelo e malas grandes e cheias. Outros, sérios e impenetráveis. Olhares sisudos que não me deixam perceber se vêm para para uma festa ou para um funeral. Há sempre olhos molhados pelo aconchego do reencontro.

Partidas.
Partem em bandos. Com tons avermelhados de quem esteve aqui a aproveitar o nosso sol e regressam com a alma iluminada pela vitamina D aos seus países de pouca luz. Nas mochilas, toalhas com o Galo de Barcelos estampado, imans de frigorífico em forma de Torre de Belém e Fado. Outros abalam daqui em busca do futuro que o país não lhes pode dar. Vão para a Europa civilizada ou para a África dos ovos de ouro. Misturam-se as lágrimas de quem fica com as lágrimas de quem vai no momento da separação. Há sempre olhos molhados pelo abandono da despedida.

Depois perde-se-lhes o rasto. Espreita-se um bocadinho da história sem nunca se saber o começo nem vislumbrar o fim.


O Aeroporto da Portela foi inaugurado em 15 de Outubro de 1942. Logo a seguir abriu o Aeroporto de Cabo Ruivo. Os voos transatlânticos eram feitos por hidroavião desde os anos 30. Os aviões poisavam no Tejo ali à beira de onde hoje está o Parque das Nações. Os passageiros vinham de automóvel pela Avenida Entre-os-Aeroportos que agora se chama Avenida de Berlim e iam apanhar os voos de ligação ao resto da Europa à Portela. Muito prático. Para a época.

Hoje, só ficou a Portela. A sete quilómetros do centro da cidade, é de fácil acesso. Tem o parque de estacionamento mais caro da cidade. Talvez por isso, um clássico das Chegadas, seja ver os automóveis a circular naquela espécie de rotunda muito devagarinho até pararem num sitio onde a polícia não os possa topar. E ver a polícia a circular muito devagarinho para os apanhar e por a andar.

Houve já várias tentativas de tirar o aeroporto dali. Que é pequeno. Que é demasiado dentro da cidade. Que pode ser perigoso ter os aviões a aterrarem tão perto das habitações. Mas que sabe bem aterrar e estar a um saltinho de casa, sabe.

Gosto de lá ir. Gosto de lá ir buscar os amigos que chegam. Gosto de lá ir abraçar os amigos que partem. Gosto de lá ir e partir. Gosto de lá ir porque regresso. É tão bom ver a Portela da janela do avião e pensar, cheguei a casa.

domingo, 12 de outubro de 2014

Centro Cultural.

Quem somos? De onde vimos? Para onde vamos?

Mal passo a porta do Centro Comercial do Martim Moniz passo a ser a estrangeira que vem da velha Europa e que entra em continentes longínquos e misteriosos. Tudo aquilo que eu acho que sei se altera instantaneamente. Aqui somos outros. Aqui somos os outros.

Ou talvez não.

Durante anos passei no lado de fora desta porta e fui adiando a entrada. A verdade é que tinha um certo acanhamento. E receio. Um receio absurdo de que me fizessem um mal que eu não sabia bem qual seria. Um mal qualquer. Como aquele que o Bicho Papão me teria feito em criança. Caso o Bicho Papão existisse. Talvez venha daí um medo que nos acompanha o resto da vida: das coisas que não existem.

Um certo acanhamento por me sentir ingénua. Por não saber distinguir o cheiro quente do cominho moído do perfume melado do açafrão. Por não enxergar a diferença entre massa de arroz e massa de ovo.

Mas um dia chegou em que me enchi de coragem e entrei. A motivação foram os cardamomos. Um basmati sem cardamomos perde a magia. E eu, que queria mesmo fazer truques na cozinha, lá me afoitei a entrar.

Pessoas. Lá dentro a circular absortas nas suas inadiáveis tarefas. Pessoas.

Pessoas. Todas as etnias que vieram do lado de lá do mar e por aqui desaguaram. Todas as cores que o mundo tem aqui se cruzam. Pessoas.

Lojas. Lojas apinhadas de toalhas de mesa, turcos, pijamas, camisolas da selecção, pantufas, meias, óculos de sol, cintos da moda, cuecas, relógios de fiel imitação e cachecóis. Tudo mais barato. Tudo ao desbarato. Lojas.


Cheiros. Odores quentes que cheiram a cores fortes. Cravinho, pimenta, canela, anis estrelado, cardamomo, cominho, coentro, malagueta, baunilha, folha de caril, noz-moscada e incenso. Cheiros.

Lojas. Lojas com saris, kimonos, roupa de dança do ventre, turbantes, pashminas e outras fatiotas de nomes enigmáticos e bonitos. Lojas.

Caixas. Gigantes, cheias de secretas mercadorias. Encostadas em cada canto em montanhas precárias e periclitantes. Chegaram mesmo há bocado do outro lado do mundo e estão já de saída para se espalharem pelos quatro cantos da cidade. Caixas.

Lojas. Arroz, massa chinesa, óleo de palma, tamarindo, banana-pão, peixe seco, gengibre, pato fumado, hóstias de camarão, couscous, picle de manga e conservas de lichias. Lojas.

Línguas. Uma babel na Mouraria, bairro onde nasceu o fado, um dos pilares da divulgação do Português. Letras estranhas, palavras adocicadas, ásperas, como se soassem a saudades de longe. Na hora de comprar o que me safa é a universalidade do sorriso. Línguas.

Tão feio por fora. Tão vivo por dentro.

Dessa primeira ida, lembro-me que trouxe os cardamomos, caril, arroz e muitos saquinhos de especiarias que nunca cheguei a usar.

Agora até lá vou e saio sem comprar nada. Vou porque sim. Ao fim de um dia de trabalho, quando não sei para onde vou, vou por ali.