Por toda a Lisboa cheira
a sardinha e carvão. Na Avenida da Liberdade desmontam-se as
tribunas de honra e limpam-se do chão os copos de plástico e as
lantejoulas que cairam dos vestidos das marchas. Os lisboetas estão
em casa com as persianas fechadas a curar a ressaca. As festas do
padroeiro da cidade são de arromba e até os festeiros profissionais
sucumbem nesta altura do ano.
Assim seria Janeiro.
Sairíamos à rua para comemorar o padroeiro de Lisboa, se, ao
caminho não se tivesse metido um tal de António, mais dado a
festas, que os alfacinhas colocaram no pedestal dos pedestais. E foi
uma devoção tão arrebatadora, que este santo careca e dado a
cheirar manjericos, roubou o dia feriado ao São Vicente, o oficial.
O verdadeiro padroeiro de Lisboa.
Vicente, um castelhano de
Saragoça, cristão martirizado até à morte por se recusar a
oferecer sacrifícios aos deuses romanos, foi atirado aos animais
para ser devorado. Porém, um corvo ficou de sentinela ao corpo e não
permitiu que tal acontecesse. A maravilha foi vista como um milagre e
logo ali o enterraram e ergueram uma igreja.
Depois vieram os mouros
que não acharam piada nenhuma ao culto daquele lugar. Colocaram os
restos mortais de São Vicente num barco que largaram à deriva no
mar.
Levado pelas marés, o
barco foi naufragar ali ao Algarve, num sitio chamado Promontório
Sacro, que hoje é conhecido por Cabo de São Vicente.
De novo se enterrou o
corpo e se ergueu igreja. Uma povoação surgiu em volta e a vida
voltou à normalidade. Um santo, uma aldeia.
Até que os mouros vieram
outra vez. E outra vez o culto foi impedido.
Mas chegou o dia em que
D. Afonso Henriques resolveu esticar o Condado Portucalense até ao
Algarve e ter o seu próprio reino. Ao chegar à tal igreja lá para
Sul, mandou resgatar as relíquias do, já habituado a transladações,
Vicente e trazê-lo para Lisboa. Toca a enfiar o corpo outra vez num
barco e ala para cima.
Ao longo da viagem, dois
corvos ladearam a embarcação e velaram o mártir. À chegada a
Lisboa, o que sobrou do santo, foi sepultado numa igreja fora da
muralha do castelo. Os habitantes da cidade, comovidos com a
história, passaram a venerar o São Vicente, que em 1173 foi
proclamado santo padroeiro de Lisboa.
Os corvos foram directos
para as armas da cidade, a igreja passou a chamar-se de São Vicente
de Fora e chegou a dar nome a uma freguesia de Lisboa. O dia 22 de
Janeiro, passou a ser o dia de São Vicente.
Quem não deve ter
gostado muito disto, foi o São Crispim. Ele é que era o padroeiro
da cidade até chegarem as ossadas desse castelhado armado em mártir.
Mas Deus não dorme. E um dia chegou o outro.
O tal do António.