Há nos prédios pombalinos um tipo
de capa solitária que os envolve do telhado ao rés-do-chão e se lhes entranha
nas traves de madeira, corroendo-as mais do que o caruncho. Uma solidão
contagiosa que entra nas casas e se pega aos seus moradores.
Há nestes prédios almas que penam
por sozinhas. A quem ninguém visita. A quem ninguém telefona. A quem ninguém
convida para a ceia do Natal. Pessoas que esperam desde cedo pelo toque do carteiro
para se sentirem solicitadas.
O meu prédio pombalino não é
excepção. Aqui no andar por cima do meu, vive o Sr. José. Solitário militante e
medicado, que passa os dias entre a sua casa, o café para beber a bica e o
supermercado.
Sempre elegante, de calças
vincadas e sapatos engraxados, ao domingo veste o fato e mete um lenço ao
pescoço. Não sorri. Fuma incontáveis cigarros que deixam um cheiro agarrado ao
corrimão das escadas, assinalando a sua passagem. Refere-se à ida à tropa como
a descida aos infernos. Não tem amigos. Não se dá com a família. Toma
comprimidos para dormir. Mesmo de dia. Tem talvez uns 55 anos de solidão.
Quando me mudei para cá tinha
algum medo dele. Aquele senhor sisudo que me dava os bons-dias com o rosto
virado para dentro, parecia-me muito sinistro.
Um dia, passava ele por baixo da
minha varanda enquanto eu estendia a roupa e deixei-lhe cair uma mola bem no
centro da cabeça. “Estou desgraçada.”, pensei. Mas logo o senhor apanhou a
mola, subiu as escadas e bateu-me à porta para a entregar.
Outro dia bateu-me à porta para
perguntar se o meu telefone estava a funcionar. Como eu disse que sim, pediu-me
para o deixar ligar para os TLP para virem reparar a avaria. E lá ficou o Sr.
José sentado no meu sofá a ouvir a gravação da PT durante meia-hora. Passados
uns tempos estava-me a pedir ajuda para preencher o impresso do IRS. O que eu
fiz.
Como agradecimento por estas
ajudas, toca-me à campainha mal me ouve chegar do trabalho e oferece-me pacotes
de bolacha-maria. Houve até um dia que vieram acompanhadas de um litro de leite
“para a menina desembuchar das bolachas”.
Sempre que me encontra na rua
lança-me uma frase gentil, quase um piropo, mas à moda antiga.
“A vizinha é uma flor que faz o dia mais
bonito.”.
“A vizinha anda sempre a passear elegância
pela rua.”
E eu sorrio e agradeço.
Outras vezes segura-me a porta
para eu entrar no prédio. Ou dá-me as boas-noites da varanda se me vê a
estender a roupa. Sempre contido. Sempre educado.
Agora entrámos numa nova fase.
Oferece-me canecas com desenhos natalícios. A primeira bateu-me à porta em
Agosto. “A vizinha é tão simpática comigo e olhe, gosto de si. Pegue lá.”. E
vai-se embora logo de seguida. E eu quase não tenho tempo para agradecer.
Tudo isto me deixa com o coração
doce. Tudo isto me deixa com o coração amargo. Como é que alguém pode ser tão
só que uma mera ajuda de boa vizinhança faz sentir tanta gratidão? E eu que não
gosto de bolachas nem de leite, fico com vontade de o convidar para entrar e
comer comigo. Mas ele desaparece logo pelas escadas acima.
E o que é que eu faço com canecas
de Natal em pleno mês de Agosto?
Guardo-as no armário, como se
fossem da Vista Alegre. Quando chegarem dias tristes, beberei nelas um chá que
me aquecerá a alma como se fosse Verão.