Há muitos anos atrás, todas as
manhãs, lá em casa, o meu pai sintonizava um pequeno transístor na Antena 1, para
ouvirmos as notícias. Na correria matinal dos banhos, das roupas, dos “hoje não
quero ir à escola” e do “bebe o leite que estamos atrasados”, tínhamos aquela
banda sonora de notícias. A Guerra das Malvinas, o governo de Sá Carneiro, a Olivia
Newton-John pelo meio “ Let´s get physical, physicaaal”, a queda do
avião de Sá Carneiro em Camarate, a Guerra Irão-Iraque, o governo de
Pinto Balsemão, o atentado ao Papa João Paulo II, “It´s the eye of the tiger,
It’s the trill of the fight” dos Survivor, o trânsito entupido na Calçada de
Carriche, o governo de Mário Soares, o preço da gasolina e as piadas sobre o
Tollan.
No dia 16 de Fevereiro de 1980,
um cargueiro sueco de nome Barranduna, colide no Tejo, ali na zona do Cais do
Tabaco, com o porta-contentores inglês MV Tollan. Tal como rezam algumas lendas
da nossa história, foi numa manhã de nevoeiro. Cerrado e húmido. Os barcos
embateram, quatro pessoas morreram e a paisagem lisboeta mudou. Passados dois
dias, o Tollan deu uma volta de 180 graus e foi encalhar com o casco vermelho
virado para cima mesmo em frente ao Terreiro do Paço.
E ali ficou. Durante três anos
empreenderam-se tentativas de tirar dali o barco, mas ele, afeiçoado a Lisboa e
tendo encontrado no Tejo um bom companheiro de boémia, recusou-se a sair. O
Tollan virou monumento nacional e de visita turística obrigatória para quem
vinha à capital.
Aos domingos os casais namoravam
em frente ao rio com vista para o Tollan. Os turistas fotografavam as gaivotas
pousadas no casco do barco. Conjecturaram-se histórias sobre o que estaria
escondido na barriga da embarcação. Máquinas de escrever, chá verde, alfaias
agrícolas ou cadáveres que não interessava descobrir. Consta que nunca ninguém
reclamou a carga. Inventaram-se anedotas. Na rádio ouvia-se todas as manhãs “Alô.
Alô. Gaivotas, Tollan”.
O Tollan foi acolhido com carinho
pelo coração piegas do alfacinha. Nesta coisa tão portuguesa de se afeiçoar até
às coisas feias e as tornar poéticas. O Tollan passou a ser português. De tal
maneira que se deu o seu nome a bares e restaurantes e outros estabelecimentos
comerciais. De cada vez que o tentavam desencalhar, o português torcia para que
corresse mal. No conturbado período político que se vivia, dizia-se que o
Tollan estava direito, o país é que estava de pernas para o ar.
Depois, num dia de Dezembro de
1983, após tombar uma grua em mais um esforço para arrancar o Tollan do Tejo,
lá se conseguiu tal feito. E o Tejo perdeu o seu mais fiel compincha.
E eu, que vim pela primeira vez a
Lisboa já depois de terem tirado o Tollan do Tejo, quando passo no Cais das
Colunas penso nele. Naquele nome que povoa as recordações das minhas manhãs de infância.
Daquela vontade de ir a Lisboa e o ir espreitar. Sinto saudades de uma coisa
que nunca vi? Pois claro que sim. Como qualquer bom lisboeta tenho o Tollan
encalhado na minha memória.
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