domingo, 13 de dezembro de 2015

Tollan.



Há muitos anos atrás, todas as manhãs, lá em casa, o meu pai sintonizava um pequeno transístor na Antena 1, para ouvirmos as notícias. Na correria matinal dos banhos, das roupas, dos “hoje não quero ir à escola” e do “bebe o leite que estamos atrasados”, tínhamos aquela banda sonora de notícias. A Guerra das Malvinas, o governo de Sá Carneiro, a Olivia Newton-John pelo meio “ Let´s get physical, physicaaal”, a queda do avião de Sá Carneiro em Camarate, a Guerra Irão-Iraque, o governo de Pinto Balsemão, o atentado ao Papa João Paulo II, “It´s the eye of the tiger, It’s the trill of the fight” dos Survivor, o trânsito entupido na Calçada de Carriche, o governo de Mário Soares, o preço da gasolina e as piadas sobre o Tollan.

No dia 16 de Fevereiro de 1980, um cargueiro sueco de nome Barranduna, colide no Tejo, ali na zona do Cais do Tabaco, com o porta-contentores inglês MV Tollan. Tal como rezam algumas lendas da nossa história, foi numa manhã de nevoeiro. Cerrado e húmido. Os barcos embateram, quatro pessoas morreram e a paisagem lisboeta mudou. Passados dois dias, o Tollan deu uma volta de 180 graus e foi encalhar com o casco vermelho virado para cima mesmo em frente ao Terreiro do Paço.

E ali ficou. Durante três anos empreenderam-se tentativas de tirar dali o barco, mas ele, afeiçoado a Lisboa e tendo encontrado no Tejo um bom companheiro de boémia, recusou-se a sair. O Tollan virou monumento nacional e de visita turística obrigatória para quem vinha à capital.

Aos domingos os casais namoravam em frente ao rio com vista para o Tollan. Os turistas fotografavam as gaivotas pousadas no casco do barco. Conjecturaram-se histórias sobre o que estaria escondido na barriga da embarcação. Máquinas de escrever, chá verde, alfaias agrícolas ou cadáveres que não interessava descobrir. Consta que nunca ninguém reclamou a carga. Inventaram-se anedotas. Na rádio ouvia-se todas as manhãs “Alô. Alô. Gaivotas, Tollan”.

O Tollan foi acolhido com carinho pelo coração piegas do alfacinha. Nesta coisa tão portuguesa de se afeiçoar até às coisas feias e as tornar poéticas. O Tollan passou a ser português. De tal maneira que se deu o seu nome a bares e restaurantes e outros estabelecimentos comerciais. De cada vez que o tentavam desencalhar, o português torcia para que corresse mal. No conturbado período político que se vivia, dizia-se que o Tollan estava direito, o país é que estava de pernas para o ar.

Depois, num dia de Dezembro de 1983, após tombar uma grua em mais um esforço para arrancar o Tollan do Tejo, lá se conseguiu tal feito. E o Tejo perdeu o seu mais fiel compincha.


E eu, que vim pela primeira vez a Lisboa já depois de terem tirado o Tollan do Tejo, quando passo no Cais das Colunas penso nele. Naquele nome que povoa as recordações das minhas manhãs de infância. Daquela vontade de ir a Lisboa e o ir espreitar. Sinto saudades de uma coisa que nunca vi? Pois claro que sim. Como qualquer bom lisboeta tenho o Tollan encalhado na minha memória.

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