domingo, 20 de novembro de 2016

Rua do Monte Olivete.

A rua de que hoje escrevo não tem grandiosos monumentos nem movimento notável. Não sei dela histórias de tragédias, nem de amores ou de algum rei que ali tenha sido deposto. É só uma artéria que sai do meu coração e oxigena o meu amor por esta cidade. Sempre que passo, enche-se-me a alma de poemas que não se transformam em palavras. Sempre que passo, atraso o passo para afinar o ritmo da cidade à minha pulsação. Chama-se Rua do Monte Olivete e fica ali perto da Praça do Príncipe Real.

Ao cimo a Rua da Escola Politécnica, membro da mais alta realeza dos arruamentos lisboetas, exibe-se em lojas hipster e gente bem trajada. Ao fundo o Largo Agostinho da Silva, silencioso e com os bancos de jardim sempre vazios.

Vindo do lado da Praça das Flores, a Rua Monte Olivete é uma subida íngreme e quase ingrata, não fora o fôlego constante que cada passo em esforço nos traz ao olhar. Passeios estreitos onde não cabem namorados de mãos dadas e onde os saltos das senhoras não se equilibram bem, sobem ao lado de fileiras de prédios construídos depois do terramoto. Cada edifício um tom alfacinha. Do verde desbotado pela meteorologia ao azul vivo dos azulejos, do rosa apagado ao amarelo Carris, a paleta cromática da cidade está espelhada nas fachadas.

As casas com as portas de madeira e a numeração suspensa nas ombreiras de pedra recolhem o sol matutino com ansiedade. A luz boa só bate ali algumas horas. Da Escola Politécnica chegam os ruídos dos automóveis que passam incessantes. Mas ali os sons são baixos, como se passássemos numa aldeia à hora da sesta. Ouve-se cada passo nos passeios de calçada branca ou no empedrado negro da estrada.

Não fosse eu ter lá morado e talvez nunca tivesse reparado nela. O quanto eu gostei de ali viver não se explica lá muito bem. De me instalar na janela das traseiras e ficar a ver anoitecer nos pátios que se escondem por trás de cada casa. De ouvir os cânticos da antiga Sinagoga de Lisboa ali ao lado. Da velhinha que morava ao cimo da rua e me dava fatias de bolo porque sabia que eu sou do Benfica. De comprar maçãs na mercearia da esquina e de tentar sacar uma palavra simpática ao vendedor que nunca sorria.

Na rua que é um poema moraram poetas. Gosto de acreditar que o Alexandre O’Neill escreveu Um Adeus Português quando ali morou, mesmo que a cronologia não o confirme. Invento-o a olhar pela vidraça num dia cinzento meditando no “modo funcionário de viver”. Consigo ver o António Tabucchi a abrir a janela de casa e a ler um romance inteiro.

Se há rua de onde tenho saudades de viver é da Monte Olivete. Daquela formosura lisboeta em cada vista. Daquela alegria serena cravada em cada portada antiga. De imaginar que vivia dentro de um livro escrito só com palavras bonitas.


domingo, 6 de novembro de 2016

Do Outono em Lisboa.


Tenho os casacos, sobretudos, cachecóis e luvas numa fila histérica à porta do guarda-vestidos a suplicarem todas as manhãs para os levar à rua. As botas atravessam-se-me ao caminho como num filme de terror, ameaçando biqueiradas se eu não as calçar. As flores da varanda voltaram a nascer. Convencidas que mudaram para um país tropical, é vê-las a abrir as pétalas delicadas ao sol matinal.

A verdade é que o frio parece estar em greve este ano. Lisboa continua solarenga e pouco vestida. De tal maneira que o homem das castanhas do Chiado parece que chegou antes do tempo. A temporada das fotos de praia nas redes sociais ainda não encerrou e no primeiro dia de Novembro, o dos santos todos, os cemitérios estavam cheios de gente de guarda-chuva aberto para não apanharem uma insolação.

Todos os anos, quando o Outono entra oficialmente nas nossas vidas, ficamos espantados por estar ainda tanto sol e calor. Esquecidos do ano anterior em que fomos à praia no 5 de Outubro, criticamos o aquecimento global sentados na esplanada à beira do Tejo a beber uma imperial fresquinha que está uma canícula que não é nada normal para esta altura. Porém este ano há uma legítima razão para alvoroço sobre a meteorologia. Se até aqui as conversas sobre o tempo serviam para preencher espaços de encontros pouco íntimos, agora são motivos de telefonemas para as nossas mães.

E é tão bom andar pelas ruas de Lisboa sem agasalhos. Sair de manhã e ter a coragem de não levar um casaco dependurado no braço. Ver o sol a afagar os prédios pombalinos e deixá-lo animar os nossos termostatos emocionais que já estavam preparadinhos para a época melancólica do cair da folha. Perguntar aos estrangeiros quantos graus estão na terra deles e fazer um sorriso condescendente. Por este andar no Verão de São Martinho a Protecção Civil vai decretar alerta vermelho por ondas de calor na capital.

Por estes motivos, declaro o Outono de 2016, o melhor Outono de sempre. O ano em que as galochas vão deixar de estar na moda, as sarjetas não vão entupir, a água não vai inundar a Baixa e chegaremos ao Natal bronzeados. Ou talvez esteja a exagerar.

Por outro lado declaro o Outono de 2016 o pior Outono de sempre. Onde andarão a tombar as folhas ocres? Quando poderei começar a deixar entrar a saudade do Verão dentro da minha corrente sanguínea? Preciso de molhar os sapatos numa poça de água, de usar a manta do sofá, de aquecer as mãos com um cartucho de castanhas e que o vento me torça as varetas do guarda-chuva.


Por muito que me agrade o clima ameno, se for para continuar, em breve sofrerei de nostalgias de céus cinzentos sobre o Arco da Rua Augusta, de chuvas miudinhas no Tejo e de vento fresco na cara. Que a Lisboa do Outono também é bonita. Ganha a inquietação da tristeza com que se escrevem poemas. O que me dá a convicção de que foi nesta altura do ano que inventaram a palavra saudade.