A rua de
que hoje escrevo não tem grandiosos monumentos nem movimento notável. Não sei
dela histórias de tragédias, nem de amores ou de algum rei que ali tenha sido
deposto. É só uma artéria que sai do meu coração e oxigena o meu amor por esta
cidade. Sempre que passo, enche-se-me a alma de poemas que não se transformam
em palavras. Sempre que passo, atraso o passo para afinar o ritmo da cidade à
minha pulsação. Chama-se Rua do Monte Olivete e fica ali perto da Praça do Príncipe
Real.
Ao cimo a
Rua da Escola Politécnica, membro da mais alta realeza dos arruamentos lisboetas,
exibe-se em lojas hipster e gente bem trajada. Ao fundo o Largo Agostinho da
Silva, silencioso e com os bancos de jardim sempre vazios.
Vindo do lado
da Praça das Flores, a Rua Monte Olivete é uma subida íngreme e quase ingrata,
não fora o fôlego constante que cada passo em esforço nos traz ao olhar.
Passeios estreitos onde não cabem namorados de mãos dadas e onde os saltos das
senhoras não se equilibram bem, sobem ao lado de fileiras de prédios construídos
depois do terramoto. Cada edifício um tom alfacinha. Do verde desbotado pela
meteorologia ao azul vivo dos azulejos, do rosa apagado ao amarelo Carris, a
paleta cromática da cidade está espelhada nas fachadas.
As casas
com as portas de madeira e a numeração suspensa nas ombreiras de pedra recolhem
o sol matutino com ansiedade. A luz boa só bate ali algumas horas. Da Escola
Politécnica chegam os ruídos dos automóveis que passam incessantes. Mas ali os
sons são baixos, como se passássemos numa aldeia à hora da sesta. Ouve-se cada
passo nos passeios de calçada branca ou no empedrado negro da estrada.
Não fosse
eu ter lá morado e talvez nunca tivesse reparado nela. O quanto eu gostei de
ali viver não se explica lá muito bem. De me instalar na janela das traseiras e
ficar a ver anoitecer nos pátios que se escondem por trás de cada casa. De ouvir
os cânticos da antiga Sinagoga de Lisboa ali ao lado. Da velhinha que morava ao
cimo da rua e me dava fatias de bolo porque sabia que eu sou do Benfica. De
comprar maçãs na mercearia da esquina e de tentar sacar uma palavra simpática
ao vendedor que nunca sorria.
Na rua
que é um poema moraram poetas. Gosto de acreditar que o Alexandre O’Neill
escreveu Um Adeus Português quando ali morou, mesmo que a cronologia não o confirme.
Invento-o a olhar pela vidraça num dia cinzento meditando no “modo funcionário
de viver”. Consigo ver o António Tabucchi a abrir a janela de casa e a ler um
romance inteiro.
Se há rua
de onde tenho saudades de viver é da Monte Olivete. Daquela formosura lisboeta
em cada vista. Daquela alegria serena cravada em cada portada antiga. De
imaginar que vivia dentro de um livro escrito só com palavras bonitas.