Há cá pela capital uma subespécie
de alfacinhas que são mesmo a ralé da ralé. Pessoas sem maneiras, egocêntricas
que não ligam nenhuma ao bem-estar do próximo, enfim, uma gentalha tão reles que
não há quem a ature. Chamam-se vizinhos de cima e são das figuras mais odiosas
da capital. Pelo menos é o que consta por aí. Não há vizinho de baixo que não
se queixe do energúmeno do gajo do andar de cima que passa os seus dias a planear
a melhor maneira de lhe fazer a vida negra. É que os vizinhos de cima não têm
nada para fazer na vida e preenchem o vazio dos seus dias a arquitectar planos
para tirar o descanso à vítima que mora justamente por baixo deles.
E pode parecer que estou a
exagerar, mas não estou. Tenho-me dedicado a ouvir queixas de vizinhos de baixo
e, depois de me multiplicar em análises e cálculos rigorosos, cheguei à
conclusão de que há três modelos de comportamentos típicos dessa cambada que
mora em andares acima do rés-do-chão. A saber:
Arrastam os móveis a meio da
noite. É uma das actividades mais comuns. Olham para a cristaleira mais pesada
que tiverem lá em casa, lá para as 11 horas da noite, e descobrem que onde ela
ficava bem era na outra ponta da sala. Toca então de a arrastar lenta e
sonoramente pelo soalho. E que não me venham dizer que aquilo era a cadeira e
que foi uma distracção quando se levantaram, porque é impossível. Com esta estrutura
sólida que as casas de tabique têm, uma cadeira não se ouvia.
Atiram com objectos ao chão e
depositam nesse acto todas as suas forças. Ele é copos e pratos, pisa-papéis e
ferros de engomar. Pilhas de livros que desmoronam ao pontapé, bibelots em voo
picado até se esbarrarem no soalho e caixas de tralha que colidem
estrondosamente nas tábuas de madeira. Já se sabe que nada disto é acidental.
Tudo planeado para atormentar o infeliz que mora por baixo.
Calçam sapatos de salto agulha só
para andar por casa. É que é todas as manhãs a mesma coisa. Ao lado da cama têm o tapete e os sapatinhos de salto nos quais metem os pezinhos mal se
levantam e só tiram quando entram na banheira. Andam de um lado para o outro de
casa a martelar com força o chão. Às vezes vão aos pulos para a cozinha tomar o
pequeno-almoço. E correm pela casa como se estivessem com pressa. Pressa é
coisa que gente como esta, que não faz mais nada que não seja perturbar o pobre
que mora no andar de baixo, não tem.
Há ainda a assinalar as
televisões aos berros, a roupa estendida a pingar na varanda de baixo, as
discussões infernais como não se ouvem em mais casa nenhuma, o cão que ladra
toda a noite e a máquina da roupa a lavar a altas horas. Uma série de comportamentos
imperdoáveis que só pessoas desta estirpe é que têm.
Felizmente que em Lisboa são
poucos. Numa cidade onde mora tanta gente, seria um drama se só existissem
vizinhos de cima. Afortunadamente há muitos vizinhos com quem podemos partilhar
este sentimento que só quem habita no andar posterior é que entende. Eu, por
exemplo, gosto imenso do meu vizinho de baixo. Um sujeito muito discreto.
Sempre que passa por mim nas escadas até finge que não me vê. Não levo aquilo a
peito. De certeza que não é nada pessoal.
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