domingo, 14 de setembro de 2014

O regresso.

Estou atrasada. Estou muito atrasada. Sou como o coelho da história da Alice e vou chegar atrasadíssima.


Subir a Calçada do Combro quando falta um breve quarto de hora para as nove da manhã, faz-me acreditar que todos os dias, quando a cidade acorda, traça um plano de barreiras para fazer o automobilista lisboeta chegar atrasado e com os nervos em frangalhos ao trabalho.

Da Rua do Poço dos Negros ao Camões, há-de o Elétrico 28, que vai invariavelmente à minha frente, parar sete vezes.

Três nas Paragens para saírem e entrarem passageiros, que, se correr como o previsto, compram o bilhete ao guarda-freio, que não pode conduzir e fazer trocos ao mesmo tempo.

Duas porque os carros estão mal estacionados e um elétrico não ultrapassa. O elétrico apita. O dono do carro não vem. O elétrico apita de novo. O dono aparece com um ar entre o envergonhado e o esbaforido e lá desbloqueia a passagem.

Uma por causa da camioneta que está parada a descarregar caixas de vegetais para o super-mercado e o elétrico não ultrapassa.

Uma outra vez por causa da velhinha que atravessa a rua calmamente fora da passadeira. Porque ela já atravessava ali naquele sitio antes do trânsito ser o trânsito.

Com sorte, chego ao Camões e ultrapasso o elétrico lá. Depois é só voar até à Graça. Se os semáforos ajudarem. E se não apanhar outro elétrico mais à frente.

Contudo, mesmo que os semáforos se abram num verde esplendoroso à minha passagem, hei-de penar na Baixa. As passadeiras da Rua Augusta são muito democráticas. Cada peão exerce o seu direito de decidir se atravessa ou não ao sinal vermelho. Uns acham que sim. Outros que não. Outros, indecisos, estão no passo-não-passo.

Uma velhinha atravessa a rua calmamente fora da passadeira. Porque ela já atravessava ali naquele sitio antes do trânsito ser o trânsito.


Após o grande feito de chegar à Rua da Madalena sem ter atropelado ninguém, é sempre um prazer desvendar a Sé. A Sé e os grupos de turistas que seguem o guia com o guarda-chuva fechado a apontar para o céu e que me faz sinal para parar para que possam todos atravessar a estrada em segurança. Com um sorriso condescendente lá os vejo a passearem serenos em frente a mim e depois sigo. Para parar logo a seguir, pois o autocarro em que eles chegaram, está a fazer manobras para estacionar.


Avanço.


Uma velhinha atravessa a rua calmamente fora da passadeira. Porque ela já atravessava ali naquele sitio antes do trânsito ser o trânsito.


Cerca Moura. Turistas à beirinha do passeio à procura do ângulo perfeito para a fotografia mais
linda de Lisboa. Talvez desçam do passeio. Talvez não. Talvez eu trave a tempo. Talvez não.

Uma velhinha atravessa a rua calmamente fora da passadeira. Porque ela já atravessava ali naquele sitio antes do trânsito ser o trânsito.

Calçada da Graça. Largo da Graça. Aqui a cidade acordou há horas. Carros em segunda e terceira fila. Para. Arranca. Cargas e descargas. Para. Arranca. Tomada e largada de passageiros. Para. Arranca. Atenção crianças. Para. Arranca.

Várias velhinhas atravessam a rua calmamente fora da passadeira. Porque elas já atravessavam ali naquele sitio antes do trânsito ser o trânsito.

Os minutos passaram em flechas. E quando paro o carro no parque está o rádio a dar o sinal de que são nove horas e eu finalmente consigo voar pelo meu pé até à porta do trabalho.


Agosto passou. Tudo regressou à normalidade.

1 comentário:

  1. :)) Até se sente os ponteiros do relógio a passar. A sensação é de lentidão apressada. Adorei!

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