Estou atrasada. Estou muito atrasada. Sou como o
coelho da história da Alice e vou chegar atrasadíssima.
Subir a Calçada do Combro quando falta um breve
quarto de hora para as nove da manhã, faz-me acreditar que todos os
dias, quando a cidade acorda, traça um plano de barreiras para fazer
o automobilista lisboeta chegar atrasado e com os nervos em
frangalhos ao trabalho.
Da Rua do Poço dos Negros ao Camões, há-de o Elétrico 28, que vai
invariavelmente à minha frente, parar sete vezes.
Três nas Paragens para saírem e entrarem
passageiros, que, se correr como o previsto, compram o bilhete ao
guarda-freio, que não pode conduzir e fazer trocos ao mesmo tempo.
Duas porque os carros estão mal estacionados e um
elétrico não ultrapassa. O elétrico apita. O dono do carro não
vem. O elétrico apita de novo. O dono aparece com um ar entre o
envergonhado e o esbaforido e lá desbloqueia a passagem.
Uma por causa da camioneta que está parada a descarregar caixas de
vegetais para o super-mercado e o elétrico não ultrapassa.
Uma outra vez por causa da velhinha que atravessa a
rua calmamente fora da passadeira. Porque ela já atravessava ali
naquele sitio antes do trânsito ser o trânsito.
Com sorte, chego ao Camões e ultrapasso o elétrico
lá. Depois é só voar até à Graça. Se os semáforos ajudarem. E
se não apanhar outro elétrico mais à frente.
Contudo, mesmo que os semáforos se abram num verde
esplendoroso à minha passagem, hei-de penar na Baixa. As passadeiras
da Rua Augusta são muito democráticas. Cada peão exerce o seu
direito de decidir se atravessa ou não ao sinal vermelho. Uns acham
que sim. Outros que não. Outros, indecisos, estão no
passo-não-passo.
Uma velhinha atravessa a rua calmamente fora da
passadeira. Porque ela já atravessava ali naquele sitio antes do
trânsito ser o trânsito.
Após o grande feito de chegar à Rua da Madalena
sem ter atropelado ninguém, é sempre um prazer desvendar a Sé. A
Sé e os grupos de turistas que seguem o guia com o guarda-chuva
fechado a apontar para o céu e que me faz sinal para parar para que
possam todos atravessar a estrada em segurança. Com um sorriso
condescendente lá os vejo a passearem serenos em frente a mim e
depois sigo. Para parar logo a seguir, pois o autocarro em que eles
chegaram, está a fazer manobras para estacionar.
Avanço.
Uma velhinha atravessa a rua calmamente fora da
passadeira. Porque ela já atravessava ali naquele sitio antes do
trânsito ser o trânsito.
Cerca Moura. Turistas à beirinha do passeio à
procura do ângulo perfeito para a fotografia mais
linda de Lisboa. Talvez desçam do passeio. Talvez
não. Talvez eu trave a tempo. Talvez não.
Uma velhinha atravessa a rua calmamente fora da
passadeira. Porque ela já atravessava ali naquele sitio antes do
trânsito ser o trânsito.
Calçada da Graça. Largo da Graça. Aqui a cidade
acordou há horas. Carros em segunda e terceira fila. Para. Arranca.
Cargas e descargas. Para. Arranca. Tomada e largada de passageiros.
Para. Arranca. Atenção crianças. Para. Arranca.
Várias velhinhas atravessam a rua calmamente fora
da passadeira. Porque elas já atravessavam ali naquele sitio antes
do trânsito ser o trânsito.
Os minutos passaram em flechas. E quando paro o
carro no parque está o rádio a dar o sinal de que são nove horas e
eu finalmente consigo voar pelo meu pé até à porta do trabalho.
Agosto passou. Tudo regressou à normalidade.
:)) Até se sente os ponteiros do relógio a passar. A sensação é de lentidão apressada. Adorei!
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