Meu querido António,
"Tu estás sempre ausente e não te
conseguem alcançar."
Quando se nasce estrela não há
nada que o contrarie. Nem mesmo a morte. E é por isso que tu és uma estrela que
brilha em todas as cores da paleta cromática. E é por isso que sempre que venho
aqui tentar escrever sobre ti, me sinto tão travada. Como escrever sobre alguém
cuja genialidade é tão cristalina, cuja obra é tão transparente? Como escrever
sobre o cantor que expôs a sua alma sem embaraços nas letras, na voz e nas
músicas? Como?
Parece-me inglório tentar registar
em poucas linhas. Parece-me até desnecessário. Tu és as tuas canções. Não
encontro dentro de mim melhor explicação para esta dificuldade. Cada vez que
toco no teclado penso: talvez devesse copiar uma qualquer letra dele e pronto.
Depois dizer:
Este é o António Variações, de
todas as personalidades afamadas deste país, a de maior variedade de cores e de
sons. A mais autêntica e sofisticada. Um campesino urbano. Uma portugalidade
sem vergonhas de se mostrar e amodernar. Incontornável. Algures entre Braga e
Nova Iorque.
Vou então evitar factos
históricos e citações e falar-te de mim e de ti. Daquele dia em que te vi de
pijama no Passeio dos Alegres do Júlio Isidro. Eu tinha seis anos e fiquei
fascinada. A canção chamava-se “Toma o comprimido”, mas isso eu só soube anos
mais tarde. O que eu soube naquela hora foi que gostava daquele tipo barbudo de
voz encantadoramente estridente e que dançava da forma mais esquisita que eu já
tinha visto.
Quando dei por mim andava no
carro com o meu pai a pedir para ele sintonizar o rádio na música daquele rapaz
que cantava aquela do “estou bem onde não estou”.
Uma aparição televisiva tua era
um pára-tudo-que-eu-quero-ouvir. Que eu me lembre, fui tua fã desde o primeiro
dia em que te vi. Foste a minha primeira estrela.
Por isso, quando morreste daquela
doença estranha de que ninguém ainda falava e que os meus pais ainda não sabiam
explicar muito bem, pelo menos a uma criança de 8 anos, partiste-me o coração.
E porque é que ele morreu se cantava tão bem? E porque é que queimaram as
coisas dele? Como se chamava a doença que ele tinha?
Tu dizes que todos nós temos a
Amália na voz, mas na minha voz não é a Amália que canta. És tu. Tu foste a
minha primeira discografia completa. Um presente de aniversário dos meus pais em
formato LP que me acompanhou por toda a adolescência e que está ali arrumada e
estimada no móvel. Ia crescendo contigo e descobrindo novas camadas nas tuas
letras. Novos tons na tua voz. Consolos cúmplices nas emoções que fui conhecendo.
E o que me chateia ouvir dizer
que se tu não tivesses morrido tinhas sido uma grande cena. Tu és uma grande
cena. Tu és a cena e o cenário. Tu criaste a tua obra completa.
E o que me chateia ouvir dizer
que tu eras um grande maluco. Tu que tinhas uma cabeça sã e sabias bem o que
querias. Querias encontrar a tua forma e o teu lugar.
Por estas coisas, meu querido
António, já não te sintonizo no carro do meu pai. Levo antes as tuas músicas na
cabeça ou na pen nas viagens que faço na vida. Levo-te nos phones por esta
Lisboa onde te tornaste um astro e onde morreste na noite de 13 de Junho de 1984.
A noite do outro António da cidade.