domingo, 29 de novembro de 2015

Restauradores.


No extremo sul da Avenida da Liberdade fica a Praça dos Restauradores.
Dizem os especialistas que ali começou a expansão para norte da cidade de Lisboa.

Aquele obelisco lá bem no meio simboliza o dia em que deixámos de ser espanhóis. Por causa do D. Sebastião ter a mania das grandezas e julgar que era enviado por Deus decidiu trazer para seus súbditos todos os habitantes do agora chamado Magreb e fazer a Palestina ajoelhar-se a seus pés. Juntou um exército e partiu à conquista. Porém, quando chegou a Alcácer Quibir, apanhou nevoeiro e perdeu-se. Nunca mais se viu. Deixando para trás um Portugal órfão e com um novo vinco na alma: o sebastianismo. De tal forma que ainda hoje esperamos pelo regresso messiânico de D. Sebastião, montado no seu cavalo para salvar a pátria de todas as crises e dores. Ainda bem que temos esperado sentados.

Portanto, depois de Alcácer Quibir, Portugal nunca mais foi o mesmo. D. Sebastião não deixou descendentes e os espanhóis esfregaram as mãos de contentamento. Filipe II de Espanha açambarcou Portugal. Durante 60 anos fomos governados pela Dinastia Filipina. Nunca baixando verdadeiramente os braços, no dia 1 de Dezembro de 1640, quarenta patriotas foram até ao Paço da Ribeira e deitaram pela janela os representantes do rei espanhol. Restaurando o reino de Portugal e dando início à Dinastia de Bragança.

Foi mais ou menos assim. Mais ou menos.

No dia 28 de Abril de 1886, foi inaugurado ao fundo da Avenida de Liberdade o Monumento aos Restauradores da Pátria. O tal obelisco. Custou 45 Contos de Réis e está ladeado pela Glória, com a palma numa mão e a coroa na outra, e pela Liberdade.

A praça que o circunda está inundada de história. Por ali se comemora desde então no primeiro de Dezembro a Restauração. Foi ali também que, depois de implantada a República, se hasteou pela primeira vez a bandeira nacional republicana, no primeiro de Dezembro de 1910.

Para mim a Praça dos Restauradores cheira a manifestações do 25 de Abril que terminam no Pirata para beber um Perna de Pau. Ou um Pirata. A descidas do elevador da Glória em dias de sol com a praça aberta ao céu lá em baixo à espera. A filas da Loja do Cidadão ao nascer do dia naquele edifício que foi antes o Cinema Eden. Aquele mesmo edifício que é hoje o VIP Executive Éden Aparthotel e que foi na primeira metade do século passado um dos locais mais glamorosos e concorridos da capital. Aquele mesmo edifício onde as Spice Girls vieram actuar em 1996 para inaugurar a Virgin Megastore que fechou 4 anos depois. A Praça dos Restauradores soa a noites de concertos no Coliseu, a luas gordas e silenciosas sobre o Palácio Foz e a corridas para apanhar o autocarro.

A Praça dos Restauradores tem o chão rendilhado da calçada portuguesa. Tem a história de Portugal firmada no nome. Tinha um dia feriado até 2012. Feriado que comemoraríamos esta terça-feira. Mas não faz mal. As grandes datas não se esquecem. As grandes praças não se deixam abater. O obelisco lá continua erguido em direcção ao céu como um farol a assinalar terra. Terra de Portugal.



domingo, 8 de novembro de 2015

Os lençóis da Rita.



A Rita é uma menina bonita que aos 18 anos decidiu estender os seus lençóis por esta Lisboa fora. Mas como não tinha estendal, andou a pedir estendais emprestados e, por voltas da vida, acabou por estender um lençol na varanda cá de casa.

A Rita quer é dar nas vistas. Dar nas vistas dos lisboetas que passam pelas ruas e fazê-los pensar e repensar o desaire de ser refugiado. É que a Rita aqui há tempos leu a notícia do desvio das rotas dos comboios dos refugiados na Hungria e percebeu um reflexo de uniformização dos seres humanos em números. A partir daí observou o drama dos refugiados com compaixão. Para ela, tal como a história relata, repete-se a desumanização, a incapacidade empática e a despersonalização da vítima.

A Rita quer desconstruir as imagens simbólicas e as opiniões extremistas que circulam pelos meios de comunicação e nas redes socias em particular. Dar individualidade aos protagonistas desta tragédia. Pessoalizar. Ser-humano a ser humano. Dar a oportunidade a cada um de questionar a sua posição pela emoção. Cara a cara. Caminhar nos sapatos do outro. Olhos nos olhos. Alcançar a dor de sair da sua casa, desterrado, despojado, sem rumo, sem sentido, sem querer. Olhos nos olhos.

A Rita desenhou-lhes os rostos. Os olhos expressivos de medo e incerteza. As caras cansadas de tristeza e dor. O esforço do caminho nos lábios tristes e curvados. A solidão arqueada nas sobrancelhas.

A Rita quis fundir estes rostos com a singularidade da paisagem urbana de Lisboa. Então desenhou a sua visão em lençóis. Há lá imagem mais alfacinha do que um lençol pendurado no estendal? Pôs um anúncio no Facebook e logo angariou voluntários para a sua demanda. Uns porque acharam os lençóis bonitos, outros porque queriam ser uma coisa boa na vida dos outros, porque sim, porque são solidários e empáticos.

Por Lisboa fora há lençóis pendurados nas janelas e nas varandas. No Largo da Trindade, na Rua do Benformoso, no Largo da Achada, na Rua da Graça, no Mercado de Sapadores e outro aqui na rua. Na varanda do meu quarto. Bem preso com muitas molas. São lençóis resistentes. Sobrevivem à chuva e ao vento. O mau tempo não os deita abaixo. Uma semelhança de resistência com os rostos que os ilustram.

A Rita continua resiliente à procura de estendais que queiram pendurar os seus lençóis por três semanas. De casa alfacinha em casa alfacinha eles lá andam à procura de novos sítios para chamarem seus.

Este que vejo agora, pode ficar o tempo que quiser. Acarinho-o porque sei que passa as noites ao frio e não está em sua casa. Está na minha varanda como numa pátria emprestada. E pode ficar até a Rita o vir buscar. Até lá não o tiro. Nem que as minhas vizinhas me gritem. “Vizinha, apanhe o lençol que já secou.”


https://wallynafronteira.squarespace.com/




domingo, 1 de novembro de 2015

Ao longe.



Há dias que aquela frase do Fernão Capelo Gaivota que diz que “não há longe nem distância” me anda a soar na cabeça.
É uma frase bonita. Aberta a oportunidades e a significados esperançosos e carregados de emoções. Um chocolate quente para quem tem a alma em temperaturas negativas.

Contudo, quando estamos quase todo o ano longe das pessoas com quem passamos o Natal, esta frase fecha-se em palavras bonitas que não nos dizem nada. É que a vida anda e, mesmo que a distância seja encurtada pela tecnologia, o tempo não pára. Passam os anos e nós não estamos lá.

Sou uma alfacinha da candonga e até passo bem por um produto de marca registada. Esta Lisboa faz parte dos meus tecidos e dos meus pespontos. Mas, quando chega a hora da saudade, o único fado que canto é o Fado Beirão.

O lisboeta genuíno não sabe a sorte que tem. Quando chegam os domingos preguiçosos e vai almoçar aos pais. Quando leva a sopinha para a semana na marmita que a mãe preparou. Quando precisa de coser a bainha das calças, tirar uma nódoa da camisola ou só de um olhar amoroso e sem condições e passa em casa dos pais. Ou dos avós. Ou da irmã.

É que isto de manter uma relação à distância com a família requer uma boa logística. Um telemóvel com boa definição de som para que os Parabéns soem tão desafinados como se estivéssemos lá. Uma boa câmara para filmar para mostrar as mudanças de móveis que fiz cá em casa. Uma gestão razoável da ansiedade para esperar pelo telefonema depois da consulta do médico em que se foram mostrar uns exames com valores que assustam. Marcar férias para o dia em que está previsto nascer a sobrinha. Vê-la crescer pelo Skype e conter a lágrima quando ela nos manda o primeiro beijinho pelo telefone.

Depois há os dias negros. Os dias em que a distância se transforma em muitos longes. Quando toca o telefone para dizer que alguém lá morreu. E nós, que íamos lá no próximo fim-de-semana, não queremos aceitar que a morte chegou primeiro. Não queremos não estar lá. E por muitos braços lisboetas que nos abracem cá, não há consolo que nos aqueça. Fazemo-nos ao caminho para casa, agradecemos todos os momentos em que estivemos lá e lamentamos todas as nossas distâncias. Cada fatia de bolo de aniversário que não comemos, cada ida ao médico em que não estivemos e cada domingo de sol que não passeámos.

Por isso, não me vou deixar ir na cantiga do “não há longe nem distância”. Por agora não acredito. Fico cá a contar quilómetros e a medir espaços de tempo que não consegui preencher.