domingo, 13 de abril de 2014

A morte saiu à rua.


A nossa revolução de Abril quase não fez correr sangue. Quase.

Quase. Cinco letras de palavra que mudam a história toda.

Quase. Assim se borrou a pintura.

Numa rua tão bonita como a António Maria Cardoso ali ao Chiado logo havia de acontecer o mais feio momento do dia 25. O de Abril de 1974.

A morte também saiu à rua num dia assim. Naquele lugar onde a PIDE-DGS se sediara para esquadrinhar e torturar a vida dos cidadãos perigosos e manter a tranquilidade e a ordem.

Concentrados nos movimentos no Carmo e na Praça do Comércio, os militares revoltosos descuraram a vigilância à sede nacional da PIDE. Durante grande parte do dia, os agentes da polícia política entraram e saíram do edifício. Numa fúria de esconder e queimar as vergonhas e desonras que haviam praticado de modo consciente e impune durante três décadas.

Mas o povo não se esqueceu. Foi entrando na Rua António Maria Cardoso e ocupou a rua. E arremessou palavras de ordem de saída aos pides.


16:15

Um pide com uma pistola na mão à janela. Dispara sobre a multidão.

João Guilherme Gomes Arruda. Vinte anos. Estudante. Morto.

Veio então o Exército. Chegou a Marinha. Controlaram as entradas na rua suja de sangue. Mas não controlaram o edifício. Nem conseguiram tirar dali as pessoas.

20:00

O Major Silva Pais, director da PIDE, manda disparar para o ar.
Vários pides com pistolas na mão às janelas. Disparam para baixo. Disparam sobre a multidão.

Fernando Carvalho Gesteira. Dezoito anos. Morto.

Fernando Luís Barreira dos Reis. Vinte e quatro anos. Soldado. Morto.

José James Harteley Barnetto. Trinta e sete anos. Morto.

Duas dezenas de feridos.

A PIDE terminava como surgira: assassinando.

Depois disto a sede foi tomada. Chegou auxílio. Vieram ambulâncias. Mas a morte já tinha chegado antes.

A Revolução de Abril pode contar-se numa sequência de actos de heróis que deram o corpo ao manifesto e às balas. Dos militares dispostos a morrer pela mudança, com cravos na mão e democracia na cabeça.

E se vos relato os momentos mais trágicos daquele dia, é para que se lembrem.

Há uma coisa a que os franceses chamam turismo da memória. Defendem que se deve mostrar as maldades dos humanos para que ninguém esqueça. Para que ninguém repita.

No dia 25 de Abril de 1980, um grupo de cidadãos colocou na parede da sede da PIDE-DGS uma placa com o nome dos que haviam morrido cinco anos antes.


Há cerca de dez anos o infame edifício foi transformado num condomínio de luxo.

A placa da memória foi retirada e reposta já várias vezes. A última vez que lá passei, há poucos dias, não estava lá.

Li algures que a Câmara Municipal de Lisboa apresentou queixa à Polícia Judiciária pelo desaparecimento. Li também que iria haver uma nova placa.

Somos um povo de memória curta para o bem e para o mal. Desculpamos facilmente e deitamos para trás das costas. Por isso me parece importante que a placa lá esteja. Quero lá saber que desfeie o prédio ou que incomode alguns que passam.

Quero lá a placa para que haja um registo público daquilo que não se deve repetir.


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