A nossa revolução de
Abril quase não fez correr sangue. Quase.
Quase. Cinco letras de
palavra que mudam a história toda.
Quase. Assim se borrou a
pintura.
Numa rua tão bonita como
a António Maria Cardoso ali ao Chiado logo havia de acontecer o mais
feio momento do dia 25. O de Abril de 1974.
A morte também saiu à
rua num dia assim. Naquele lugar onde a PIDE-DGS se sediara para
esquadrinhar e torturar a vida dos cidadãos perigosos e manter a
tranquilidade e a ordem.
Concentrados nos
movimentos no Carmo e na Praça do Comércio, os militares revoltosos
descuraram a vigilância à sede nacional da PIDE. Durante grande
parte do dia, os agentes da polícia política entraram e saíram do
edifício. Numa fúria de esconder e queimar as vergonhas e desonras
que haviam praticado de modo consciente e impune durante três
décadas.
Mas o povo não se
esqueceu. Foi entrando na Rua António Maria Cardoso e ocupou a rua.
E arremessou palavras de ordem de saída aos pides.
16:15
Um pide com uma pistola
na mão à janela. Dispara sobre a multidão.
João Guilherme Gomes
Arruda. Vinte anos. Estudante. Morto.
Veio então o Exército.
Chegou a Marinha. Controlaram as entradas na rua suja de sangue. Mas
não controlaram o edifício. Nem conseguiram tirar dali as pessoas.
20:00
O Major Silva Pais,
director da PIDE, manda disparar para o ar.
Vários pides com
pistolas na mão às janelas. Disparam para baixo. Disparam sobre a
multidão.
Fernando Carvalho
Gesteira. Dezoito anos. Morto.
Fernando Luís Barreira
dos Reis. Vinte e quatro anos. Soldado. Morto.
José James Harteley
Barnetto. Trinta e sete anos. Morto.
Duas dezenas de feridos.
A PIDE terminava como
surgira: assassinando.
Depois disto a sede foi
tomada. Chegou auxílio. Vieram ambulâncias. Mas a morte já tinha
chegado antes.
A Revolução de Abril
pode contar-se numa sequência de actos de heróis que deram o corpo
ao manifesto e às balas. Dos militares dispostos a morrer pela
mudança, com cravos na mão e democracia na cabeça.
E se vos relato os
momentos mais trágicos daquele dia, é para que se lembrem.
Há uma coisa a que os
franceses chamam turismo da memória. Defendem que se deve mostrar as
maldades dos humanos para que ninguém esqueça. Para que ninguém
repita.
No dia 25 de Abril de
1980, um grupo de cidadãos colocou na parede da sede da PIDE-DGS uma
placa com o nome dos que haviam morrido cinco anos antes.
Há cerca de dez anos o
infame edifício foi transformado num condomínio de luxo.
A placa da memória foi
retirada e reposta já várias vezes. A última vez que lá passei,
há poucos dias, não estava lá.
Li algures que a Câmara
Municipal de Lisboa apresentou queixa à Polícia Judiciária pelo
desaparecimento. Li também que iria haver uma nova placa.
Somos um povo de memória
curta para o bem e para o mal. Desculpamos facilmente e deitamos para
trás das costas. Por isso me parece importante que a placa lá
esteja. Quero lá saber que desfeie o prédio ou que incomode alguns
que passam.
Quero lá a placa para
que haja um registo público daquilo que não se deve repetir.
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