Afinal porque é que os
lisboetas são alfacinhas?
Reza a lenda.
Nem lenda, nem reza.
Perdeu-se nas brumas da
memória a razão pela qual um habitante da capital se designa por
alfacinha. E, se lhes perguntarem, os lisboetas respondem com
estórias diversas, umas mais convincentes que as outras, sem que se
possa chegar a uma origem comum. Cada alface, sua salada.
De todas as narrativas
que ouvi, a minha preferida é aquela que conta que no século XIX os
lisboetas tinham o costume de fazer piqueniques domingueiros na zona
saloia. Vaidosos, vestiam os seus melhores fatos para o passeio.
Atavam os seus laços ao pescoço e aí iam eles. Os saloios, que
viviam da agricultura e estavam habituados a simplicidade, observavam
estas personagens com olhos trocistas e afirmavam entre si que, com
aqueles laçarotes presunçosos, os lisboetas pareciam umas alfaces.
Daí ao alfacinha, há-de
ter sido um saltinho.
E se, durante décadas,
chamar alfacinha a alguém, podia ser ofensivo, hoje travam-se
verdadeiras batalhas verbais para se saber quem é descendente em
linha directa da horta primordial.
É que alfacinhas há
muitos.
Ser alfacinha de gema é
ter ascendência lisboeta até à segunda geração. Pelo menos. É
que isso de ter nascido na Maternidade Alfredo da Costa, não serve
para convencer os mais ferrenhos. Alfacinha que é de gema tem uma
avó da Mouraria, outra de Alfama e bisavô, quando muito, de
Benfica.
Aqueles que têm terra
fora de Lisboa, para passar o Natal, são uma espécie de alface
embalada e pré-lavada. Falta-lhes o viço de gerações sucessivas a
florescer por essas colinas fora.
Há as couves-flor, como
eu, nascidas e criadas fora desta grande alface, mas com dupla
nacionalidade. Que reclamamos o direito a ser tão alfacinhas como os
de gema. Com o coração dividido, mas sempre a suspirar de saudades
de uma Lisboa antiga que nunca vimos. Sempre dependentes desta luz
boa para florescer.
Estou em crer que Lisboa
é cidade generosa que acolhe a todos como seus rebentos. Não lhe
interessa quando chegamos. Desde que a levemos connosco para onde
formos. No fundo é como Almeida Garrett escreveu n' As Viagens na
Minha Terra: "Pois ficareis alfacinhas para sempre, cuidando
que todas as praças deste mundo são como a do Terreiro do Paço."
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