domingo, 15 de fevereiro de 2015

Fechou a loja.

Quando comprei esta casa não comprei só esta casa. Comprei um bocadinho da loja de decoração que fica aqui por baixo. A loja da Ana, aqui no rés-de-chão à esquerda, quem sai a porta do prédio. E isto é tão verdade que o meu soalho é o tecto dela.

E foi pelo tecto dela que a nossa amizade começou.

Quando comprei a casa, existiam cá umas cinquenta divisões assoalhadas mais uns cubículos escuros que eu resolvi transformar num razoável T2. Vá, num T2+1, como se usa dizer agora nos folhetos das imobiliárias. Para tal fiz umas obras demoradas e atribuladas, passíveis de causarem neste edifício pombalino tremores semelhantes aos do terramoto de 1755. Bocadinhos de parede atravessaram o soalho e foram partindo jarras de cristal, lascando guarda-jóias de porcelana e sujando velas perfumadas na loja da Ana. Objectos recolhidos pacientemente e que eu lhe comprei a um preço simbólico. Em jeito de indemnização.

Depois.

Depois começaram as longas conversas à porta da loja. As últimas cuscuvilhices da rua. As gargalhadas e os desabafos dos dias. Quando chegava a casa depois do trabalho, antes de subir, passava pela loja.

Passados uns tempos tinhamos uma espécie de duplex. As filhas da Ana vinham cá para casa fazer os trabalhos da escola e quando eu ia de férias a Ana alimentava-me a gata. A Ana guardava os rissóis que comprava à D. Zulmira no meu congelador até à hora de ir embora e abria a porta ao senhor das contagens da Epal, quando eu não estava.

A loja da Ana era a loja mais bonita cá da rua. Cheia de velas e sabonetes com perfumes de frutas exóticas e cheiros a flores que nascem em terras do lado de lá do planeta. O odor maravilhoso subia pelas escadas do prédio e entrava-me em casa. Com caixinhas-de-música, espanta-espíritos, bules coloridos e lanternas rendilhadas, enchia a vista de quem passava e as prateleiras cá de casa.

A Ana resistiu até à semana passada. Mesmo tendo sempre clientes, compravam cada vez menos. Esta maldita crise. Este maldito IVA. Esta maldita vida difícil que nos faz contar os trocos, deixa-nos sem orçamento para os objectos bonitos e cheirosos. Aqueles que também são essenciais para tornar os dias mais simpáticos. E a Ana resolveu fechar a loja antes que a loja a fechasse a ela.

Por toda a Lisboa as lojas do comércio tradicional fecham. Da drogaria à mercearia, tudo vai encerrando por falta de balanço. É a liquidação total. São os clientes a mudar de ramo rumo ao centro comercial.

A loja fechou e agora está um compartimento às escuras com papel pardo a tapar a montra debaixo da minha casa. Aqui no andar de cima já não cheira tão bem, mas por cá continuam os objectos bonitos que lhe comprei ou que ela me deu. A Ana vai ter uma vida nova que me parece que a vai fazer ainda mais feliz do que a loja. Assim espero.

Um dia destes ela telefona-me a contar.

Sem comentários:

Enviar um comentário