Quando comprei esta casa
não comprei só esta casa. Comprei um bocadinho da loja de decoração
que fica aqui por baixo. A loja da Ana, aqui no rés-de-chão à
esquerda, quem sai a porta do prédio. E isto é tão verdade que o
meu soalho é o tecto dela.
E foi pelo tecto dela que
a nossa amizade começou.
Quando comprei a casa,
existiam cá umas cinquenta divisões assoalhadas mais uns cubículos
escuros que eu resolvi transformar num razoável T2. Vá, num T2+1,
como se usa dizer agora nos folhetos das imobiliárias. Para tal fiz
umas obras demoradas e atribuladas, passíveis de causarem neste
edifício pombalino tremores semelhantes aos do terramoto de 1755.
Bocadinhos de parede atravessaram o soalho e foram partindo jarras de
cristal, lascando guarda-jóias de porcelana e sujando velas
perfumadas na loja da Ana. Objectos recolhidos pacientemente e que eu
lhe comprei a um preço simbólico. Em jeito de indemnização.
Depois.
Depois começaram as
longas conversas à porta da loja. As últimas cuscuvilhices da rua.
As gargalhadas e os desabafos dos dias. Quando chegava a casa depois
do trabalho, antes de subir, passava pela loja.
Passados uns tempos
tinhamos uma espécie de duplex. As filhas da Ana vinham cá para
casa fazer os trabalhos da escola e quando eu ia de férias a Ana
alimentava-me a gata. A Ana guardava os rissóis que comprava à D.
Zulmira no meu congelador até à hora de ir embora e abria a porta
ao senhor das contagens da Epal, quando eu não estava.
A loja da Ana era a loja
mais bonita cá da rua. Cheia de velas e sabonetes com perfumes de
frutas exóticas e cheiros a flores que nascem em terras do lado de
lá do planeta. O odor maravilhoso subia pelas escadas do prédio e
entrava-me em casa. Com caixinhas-de-música, espanta-espíritos,
bules coloridos e lanternas rendilhadas, enchia a vista de quem
passava e as prateleiras cá de casa.
A Ana resistiu até à
semana passada. Mesmo tendo sempre clientes, compravam cada vez
menos. Esta maldita crise. Este maldito IVA. Esta maldita vida
difícil que nos faz contar os trocos, deixa-nos sem orçamento para
os objectos bonitos e cheirosos. Aqueles que também são essenciais
para tornar os dias mais simpáticos. E a Ana resolveu fechar a loja
antes que a loja a fechasse a ela.
Por toda a Lisboa as
lojas do comércio tradicional fecham. Da drogaria à mercearia, tudo
vai encerrando por falta de balanço. É a liquidação total. São
os clientes a mudar de ramo rumo ao centro comercial.
A loja fechou e agora
está um compartimento às escuras com papel pardo a tapar a montra
debaixo da minha casa. Aqui no andar de cima já não cheira tão
bem, mas por cá continuam os objectos bonitos que lhe comprei ou que
ela me deu. A Ana vai ter uma vida nova que me parece que a vai fazer
ainda mais feliz do que a loja. Assim espero.
Um dia destes ela
telefona-me a contar.
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