Em Lisboa ninguém mora sozinho.
Quem vive numa rua estreita de um qualquer bairro pombalino sabe certamente
ao que me refiro.
Aqui, no meu primeiro andar com varandim para o estendal da roupa e para a
rua mora uma aldeia.
Vejamos.
Moram o Nuno e a Ana. Casal simpático, do primeiro andar do outro lado da
rua, que, durante anos, tiveram uma televisão maior que a minha. No princípio a
nossa relação passava por, daqui para ali, se espreitar os golos dos jogos de
futebol cada vez que o pessoal saltava no sofá cá de casa, batia na ligação do
cabo e, com o impulso, a minha televisão
ficava temporariamente sem sinal. O Nuno e a Ana topavam tudo. E até sorriam de
volta.
Outras vezes estendíamos a roupa ou fumávamos um cigarro ao mesmo tempo e o
sorriso foi sendo inevitável. Hoje em dia bebemos copos no restaurante aqui de
baixo.
O dono do restaurante aqui de baixo é o Marco. O Marco às vezes não desliga
o exaustor barulhento que só se ouve lá em cima no 4º andar. Durante a noite
vem o inglês do prédio ao lado tocar a todas as campainhas e dizer palavrões em
Inglês. Pensa que é o ar condicionado de alguém deste edifício. E é difícil
fazê-lo entender que não. Mesmo que o ameacemos que vamos chamar a polícia para
lhe explicar.
No dia seguinte toda a rua sabe. A gorduchinha ali do 4º andar do nº 10 que
tem um vozeirão daqueles que fazem estremecer os prédios, coloca-se na sua
varanda-tribuna e conta em discurso cheio de dramatismo a toda a gente.
Um dia, quando eu estendia a roupa e ainda era nova cá na rua perguntou-me
o nome, a idade, o preço da casa (a esta eu não respondi) e de onde é que eu
era. Embalada, quase lhe disse o meu n.º de contribuinte. Passados dez minutos,
sentei-me no sofá e ouvi em tom de altifalante: “Chama-se Couve-Flor, tem 34
anos e é da Beira!”.
Estava a contar tudo à velhota do 3º andar do outro lado, que dizem que é
bruxa e a quem eu sorrio sempre, não vá o diabo segredar-lhe coisas más sobre
mim ao ouvido.
No prédio ali da esquina vivem os velhotes mais queridos cá da rua, que vão
de mão dada apanhar o autocarro. Quando os encontro na paragem cumprimentam-me
sempre. Um dia perguntaram-me o nome e disseram-me que é sempre bom conhecer os
vizinhos.
Se formos pela rua abaixo, encontramos o prédio do galego, que passa cá só
metade do ano, a tasca do Sr. Alexandre, a barbearia do Sr. Vicente e a loja
das chaves que está agora em obras.
Graças à varanda do meu vizinho do 4º andar aqui do prédio, ficámos a saber
que há um rapaz que lá para as 3 da manhã vem fumar um cigarro à janela
completamente nu, que vivem mais abaixo duas raparigas que têm três gatos
gordos e que o casal de antipáticos do 2º andar do n.º 42, anda sempre muito
bem vestido, mas tem uma casa muito feia.
Poderia prosseguir e entrar aqui no prédio. Mas isso é outro texto.
Adoro sair à rua e dizer dez vezes “Bom-dia” em menos de cinco minutos. Há dias em que isso não é tão bom. Se acordo com
a síndrome não-me-falem-que-posso-morder pode até ser perigoso. Mas que é muito
melhor do que passar despercebida e não fazer parte do burburinho lisboeta, ai
isso é.
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