Há
alguns (na verdade, já há muitos) anos atrás eu e a minha muito
amiga Clarice (que vai odiar que eu lhe imponha este pseudónimo)
(eu até acho giro) (perdoas-me?) sentávamo-nos no átrio da
faculdade a fumar cigarros e a distinguir tipos sociais. Passávamos
horas naquilo. Tantas e tão entusiásticas que às vezes nos
esquecíamos de ir às aulas.
As
tias de Cascais não eram nada para nós. Da Lapa ao 6 de Maio
ninguém nos escapava.
Numa
tarde dessas conversas encontrámos o nosso preferido. Gostamos tanto
dele, que ainda hoje usamos a designação para enquadrar o seu
género. Chamámos-lhe “Por acaso”.
O “Por
acaso” é aquele a quem os Gatos Fedorentos chamaram o “Gajo de
Alfama”.
Um
“Por acaso” é um gingão de bigode bem aparado, cabelo sempre
penteado e oleado e de porte magro. Usa calça vermelha, sapato de
berloque pontiagudo, sempre camisa com os dois primeiros botões
abertos e blazer.
Circula
nos bairros mais típicos e de ruas mais estreitas de Lisboa. Entra
na tasca da esquina e saúda toda a gente com um Boas tardes
minha gente. Dirige-se ao balcão para beber a bica ou uma mine
fresquinha. Inicia então uma conversa com a sua audiência, ou seja,
todas as pessoas que estão no estabelecimento.
À segunda-feira o tema é inevitável: Futebol. Se o Benfica ganhou
abre a conversa em tom galarote e desfia um rosário de piadas acerca
da equipa que perdeu. Há-de também ir bater nesses Lagartos e
nesses Tripeiros de um raio que este ano é que vão ver o que é bom
para a tosse. Se o Benfica perdeu, entra de fininho e atira pérolas
verbais ao árbitro. Há-de também ir bater nesses Lagartos e nesses
Tripeiros de um raio que esta semana andam todos inchados mas que no
próximo jogo já baixam a bolinha.
Lá
para quarta-feira, dia de Cozido à Portuguesa no restaurante onde
almoça, já mais calmo da jornada futebolística, poderá falar da
crise, dos tempos da tropa, da capa do Correio da Manhã, mas o tema
de piada será, com uma inevitabilidade mortal: gajas. Gajas e mamas.
Gajas.
No
final da semana, regressa ao tema futebolístico, sempre confiante no
seu clube.
O “Por
acaso” é um cavalheiro. Chama as meninas de Minha Princesa e
pede-lhes a mão para a beijar. Beija
é sempre as costas da sua própria mão, como mandam as suas regras
muito pessoais de fineza. Lisonjeia-as com um Ora viva quem é uma
flor ou um Não sabia que as flores caminhavam. Tem sempre a unha do
dedo mínimo da mão direita comprida. Dá sempre jeito. Serve para
limpar as outras unhas, coçar o ouvido e abrir envelopes. Usa
delicadamente um palito na boca. Às vezes serve para palitar os
dentes, outras, é só para o estilo. É fiel a Nossa Senhora de
Fátima, chora quando ouve o
fado da Rua do Capelão, bom
chefe de família, cinco estrelas, um ponto e amigo do seu amigo,
mas que não lhe pisem os calos.
Um
“Por acaso” chama-se “Por acaso” porque, por acaso, começa
muitas das suas frases com Por acaso. Por acaso também termina quase
todas as suas afirmações com um Prontos. Se por puro acaso se
cruzarem com um vejam lá se eu não tenho razão.
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