domingo, 16 de fevereiro de 2014

Por acaso.

Há alguns (na verdade, já há muitos) anos atrás eu e a minha muito amiga Clarice (que vai odiar que eu lhe imponha este pseudónimo) (eu até acho giro) (perdoas-me?) sentávamo-nos no átrio da faculdade a fumar cigarros e a distinguir tipos sociais. Passávamos horas naquilo. Tantas e tão entusiásticas que às vezes nos esquecíamos de ir às aulas.
As tias de Cascais não eram nada para nós. Da Lapa ao 6 de Maio ninguém nos escapava.
Numa tarde dessas conversas encontrámos o nosso preferido. Gostamos tanto dele, que ainda hoje usamos a designação para enquadrar o seu género. Chamámos-lhe “Por acaso”.
O “Por acaso” é aquele a quem os Gatos Fedorentos chamaram o “Gajo de Alfama”.

Um “Por acaso” é um gingão de bigode bem aparado, cabelo sempre penteado e oleado e de porte magro. Usa calça vermelha, sapato de berloque pontiagudo, sempre camisa com os dois primeiros botões abertos e blazer.

Circula nos bairros mais típicos e de ruas mais estreitas de Lisboa. Entra na tasca da esquina e saúda toda a gente com um Boas tardes minha gente. Dirige-se ao balcão para beber a bica ou uma mine fresquinha. Inicia então uma conversa com a sua audiência, ou seja, todas as pessoas que estão no estabelecimento.
À segunda-feira o tema é inevitável: Futebol. Se o Benfica ganhou abre a conversa em tom galarote e desfia um rosário de piadas acerca da equipa que perdeu. Há-de também ir bater nesses Lagartos e nesses Tripeiros de um raio que este ano é que vão ver o que é bom para a tosse. Se o Benfica perdeu, entra de fininho e atira pérolas verbais ao árbitro. Há-de também ir bater nesses Lagartos e nesses Tripeiros de um raio que esta semana andam todos inchados mas que no próximo jogo já baixam a bolinha.
Lá para quarta-feira, dia de Cozido à Portuguesa no restaurante onde almoça, já mais calmo da jornada futebolística, poderá falar da crise, dos tempos da tropa, da capa do Correio da Manhã, mas o tema de piada será, com uma inevitabilidade mortal: gajas. Gajas e mamas. Gajas.
No final da semana, regressa ao tema futebolístico, sempre confiante no seu clube.

O “Por acaso” é um cavalheiro. Chama as meninas de Minha Princesa e pede-lhes a mão para a beijar. Beija é sempre as costas da sua própria mão, como mandam as suas regras muito pessoais de fineza. Lisonjeia-as com um Ora viva quem é uma flor ou um Não sabia que as flores caminhavam. Tem sempre a unha do dedo mínimo da mão direita comprida. Dá sempre jeito. Serve para limpar as outras unhas, coçar o ouvido e abrir envelopes. Usa delicadamente um palito na boca. Às vezes serve para palitar os dentes, outras, é só para o estilo. É fiel a Nossa Senhora de Fátima, chora quando ouve o fado da Rua do Capelão, bom chefe de família, cinco estrelas, um ponto e amigo do seu amigo, mas que não lhe pisem os calos.
Um “Por acaso” chama-se “Por acaso” porque, por acaso, começa muitas das suas frases com Por acaso. Por acaso também termina quase todas as suas afirmações com um Prontos. Se por puro acaso se cruzarem com um vejam lá se eu não tenho razão.







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