Esta
semana a D. Leonor morreu.
A D.
Leonor é a minha vizinha velhinha aqui do 1º esquerdo.
Quando
me mudei, foi a primeira cara que conheci aqui do prédio. Tocou-me à
campainha e apresentou-se com um sorriso. Queria saber como era da
limpeza das escadas. Ela e a anterior proprietária do meu
apartamento intercalavam. Uma semana lavava uma e na semana seguinte
era a outra. Mirei aquela senhora de idade avançada e, antes que
desse por isso, estava a prometer: “Não se preocupe. Limpo eu
todas as semanas”.
Promessa
que não cumpri. Se lavei as escadas todos os meses foi uma sorte.
Claro, que a partir desse dia, sempre que me cruzei com ela, ouvi a
frase: “Estas escadas estão uma miséria.”
A D.
Leonor vivia sozinha. O marido morreu há uns dez anos. Não tinha
gatos. Tinha um filho que vinha todos os fins-de-semana e a levava a
almoçar fora. Nesse dia ela vestia uma roupa mais bonita,
perfumava-se e penteava-se melhor. Nos outros dias ia para o
Convívio.
O
filho telefonava-lhe todos os dias. Facto que para ela era uma
constante preocupação. Tinha que ter o telemóvel sempre disponível
fosse a que hora fosse. Por isso, sempre que aparecia um postalinho a
piscar no visor, tocava-me à campainha para saber se estava
avariado. Certa madrugada, lá pelas seis da manhã, acordou-me
preocupada, porque não conseguia ligar a maquineta e o filho podia querer falar com ela. Devo ter feito uma cara de tão poucos amigos que, no dia
seguinte, ofereceu-me uma toalha de renda feita por ela. “Assim,
mesmo quando eu morrer, vai lembrar-se sempre de mim.”
Um dia
fez questão de me mostrar a sua casa. Cheia de bibelots e naperons.
Com santinhos e terços pendurados nas paredes. As caixas dos
medicamentos organizadas na bancada da cozinha. Os quartos muito
arrumados e com colchas de renda feitas por ela.
A D.
Leonor tinha uma cabeça óptima. Sabia sempre a quantas andava, a
que horas passava o carteiro, não abria a porta a estranhos e
espantava os Jeovás. Quando estava na varanda e eu ia apanhar a
roupa da corda, oferecia-me sempre ajuda: “ Menina, posso não
estar boa das pernas, mas as mãos estão muito bem.”
As
pernas da D. Leonor eram o seu maior problema. Sempre com duas
canadianas, descia e subia as escadas muito devagar. O que, por
vezes, causava verdadeiros engarrafamentos. Uma fila de vizinhos
atrás dela à espera ansiosos. Por isso, sempre que eu a avistava a
meio da rua no seu caminho para casa, acelerava para lhe passar à
frente. Saudava-a e dizia-lhe que ia com pressa.
Na
semana passada o coração ficou fraquinho. O filho veio buscá-la
para a levar ao hospital. E não voltou mais.
No dia
em que morreu, quando cheguei a casa e olhei para as escadas, deu-me
uma fúria lavadora. Agarrei na vassoura e na esfregona e ficaram a
brilhar. Até lhe limpei a porta.
Porta
que está agora tão fechada que vai precisar de ser empurrada com
força para voltar a abrir. Fechada com os santinhos, os bibelots e
os medicamentos na bancada da cozinha à espera de alguém que não
volta. Já não há mais filas nas escadas nem ninguém atento à
chegada do carteiro.
Um
destes dias chegam uns vizinhos novos e eu vou-lhes falar da limpeza
das escadas e mostrar-lhes a minha toalha de renda. E explicar-lhes
que foi a D. Leonor que a fez. A D. Leonor, a vizinha que já não
mora aqui.