domingo, 16 de novembro de 2014

Ah Fadista!







Chorem fadistas. A Severa morreu.

A trigueira mais bonita que brotou na Madragoa, teve no nome a sina de uma vida desalmada.
Severa nasceu. Maria Severa Onofriana, filha de um taberneiro e de uma prostituta. Era o ano de 1820. Cresceu nas ruas e nas tabernas e demasiado nova seguiu as pegadas profissionais da mãe.

Cedo o fado cruzou o seu destino. Chamavam-na de Meretriz Cantadeira. Moça bonita, de pele branca, magra sem ser franzina, peito farto, olhos de azeitona e cabelos longos cor de asa de corvo. Da sua boca pequena saia um potente vozeirão que soava da Mouraria ao Bairro Alto. Nas ruas estreitas dos bairros velhos de Lisboa, onde estivessem boémios, estava a Severa a cantar o fado.

Chorem guitarras. A Severa morreu.

Mulher de má vida, amante de muitos, nunca largou a sua profissão. Gostava de ir às touradas no Campo de Santana e não virava a cara a uma boa zaragata. O Conde de Vimioso, homem de touros e paródia, pôs-lhe a vista em cima e quis tomá-la por sua. Mas não se toma posse de um coração independente. Esperta, aproveitava os favores do conde para andar de vida airada, prestando favores mediante pagamento aos que por ela procuravam. Até que um dia, o conde, homem garboso e pinga-amor, se apaixonou por uma cigana e a deixou.

Chorem tabernas. A Severa morreu.

Dizem que cantou em salões da aristocracia lisboeta. Mas onde se sentia bem era nas tabernas mais vadias da capital. Não bebia, mas de cigarro na mão, seduzia a todos com a sua voz.
Não se sabe quem nasceu primeiro, se a Severa se o Fado. Mas é certificado por especialistas em saudade, cientistas do destino, que um não poderia ter existido sem o outro. A melodia ganhou contornos de tristeza no brado dela, que, por sua vez, era o alento para soltar a sua alma em melodia.

Chora Lisboa. A Severa morreu.

Sobre ela escreveram-se romances, redigiram-se teses e nasceram fados. Sobre ela, ainda hoje se escutam borburinhos na Mouraria. Sobre ela fez-se o primeiro filme sonoro português em 1931, que, pasmem-se, teve 200 mil espectadores.
A Severa corre nas veias de Lisboa. É um mistério mal revelado que se canta hoje em todo o lado.
Morreu aos 26 anos, tuberculosa, abandonada num reles bordel na Rua do Capelão, em Novembro de 1846. Pediu para ser sepultada sem caixão na vala comum do Cemitério do Alto de São João. Reza a lenda que as suas últimas palavras foram: “Morro sem nunca ter vivido”. Mal sabia que nascia para a imortalidade e que, se escutarmos com atenção, a podemos ouvir em cada esquina de Lisboa.

Sem comentários:

Enviar um comentário