Chorem
fadistas. A Severa morreu.
A
trigueira mais bonita que brotou na Madragoa, teve no nome a sina de
uma vida desalmada.
Severa
nasceu. Maria Severa Onofriana, filha de um taberneiro e de uma
prostituta. Era o ano de 1820. Cresceu nas ruas e nas tabernas e
demasiado nova seguiu as pegadas profissionais da mãe.
Cedo o
fado cruzou o seu destino. Chamavam-na de Meretriz Cantadeira. Moça
bonita, de pele branca, magra sem ser franzina, peito farto, olhos de
azeitona e cabelos longos cor de asa de corvo. Da sua boca pequena
saia um potente vozeirão que soava da Mouraria ao Bairro Alto. Nas
ruas estreitas dos bairros velhos de Lisboa, onde estivessem boémios,
estava a Severa a cantar o fado.
Chorem
guitarras. A Severa morreu.
Mulher
de má vida, amante de muitos, nunca largou a sua profissão. Gostava
de ir às touradas no Campo de Santana e não virava a cara a uma boa
zaragata. O Conde de Vimioso, homem de touros e paródia, pôs-lhe a
vista em cima e quis tomá-la por sua. Mas não se toma posse de um
coração independente. Esperta, aproveitava os favores do conde para
andar de vida airada, prestando favores mediante pagamento aos que
por ela procuravam. Até que um dia, o conde, homem garboso e
pinga-amor, se apaixonou por uma cigana e a deixou.
Chorem
tabernas. A Severa morreu.
Dizem
que cantou em salões da aristocracia lisboeta. Mas onde se sentia
bem era nas tabernas mais vadias da capital. Não bebia, mas de
cigarro na mão, seduzia a todos com a sua voz.
Não
se sabe quem nasceu primeiro, se a Severa se o Fado. Mas é
certificado por especialistas em saudade, cientistas do destino, que
um não poderia ter existido sem o outro. A melodia ganhou contornos
de tristeza no brado dela, que, por sua vez, era o alento para soltar
a sua alma em melodia.
Chora
Lisboa. A Severa morreu.
Sobre
ela escreveram-se romances, redigiram-se teses e nasceram fados.
Sobre ela, ainda hoje se escutam borburinhos na Mouraria. Sobre ela
fez-se o primeiro filme sonoro português em 1931, que, pasmem-se,
teve 200 mil espectadores.
A
Severa corre nas veias de Lisboa. É um mistério mal revelado que se
canta hoje em todo o lado.
Morreu
aos 26 anos, tuberculosa, abandonada num reles bordel na Rua do
Capelão, em Novembro de 1846. Pediu para ser sepultada sem caixão
na vala comum do Cemitério do Alto de São João. Reza a lenda que
as suas últimas palavras foram: “Morro sem nunca ter vivido”.
Mal sabia que nascia para a imortalidade e que, se escutarmos com
atenção, a podemos ouvir em cada esquina de Lisboa.
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