Ao balcão de um café ali na Lapa pouso o
livro da Noemi Jaffe e peço uma bica. Tenho pressa.
Entras. Ficas ao meu lado. A menos de um
passo de distância. Pedes qualquer coisa que eu não entendo.
Talvez não sejas tu. Assim de lado não
consigo ver muito bem. Quase arranjo um problema de vista assim a esforçar os
olhos para o lado esquerdo da forma mais disfarçada que a anatomia me permite.
Pareces mesmo tu.
A empregada do balcão lá da ponta diz em
voz que se ouve bem: “Bom dia Dona Aldina.”
És tu.
Digo ou não digo?
De tanto olhar de lado já estás a olhar
para mim também. Já deves estar habituada. As pessoas devem olhar
constantemente. Como eu agora, a tentar ser discreta mas sem conseguir. Estás
mesmo fixa em mim e devo já estar a incomodar-te. Agora tenho mesmo que dizer
qualquer coisa. Tenho pressa. É agora ou vou-me embora.
Digo.
Eu, “Desculpe, estava a olhar para si.
Estava a pensar se lhe diria ou não que é a minha fadista favorita.”
Ela, “Não. Eu é que estava a olhar para
si. É que gosto tanto desse livro que aí tem. Até devia estar a incomodá-la.”
Tu a incomodar-me. Tu. Aldina Duarte, fado
para os meus ouvidos.
Tu és a princesa do fado. Só porque a
Amália é a rainha e esse posto está tomado até não restarem colinas em Lisboa.
E que me perdoe a Hermínia, que tem a minha devoção, mas quem me dá de beber à
dor és tu.
Tu és a fadista soberana. A tua voz tem
textura de xailes negros e pronuncias as sílabas como se soubesses o capítulo
de fonética e fonologia da gramática do Celso Cunha e do Lindley Cintra de memória.
E cantas com a intenção do texto, como se te saísse por inspiração naquele
momento e não fosse uma letra que conheces de cor. Mostras a alma sem cortinas
e desconcertas-nos por parecer tão fácil. Genuína e crua, tens na voz os
fadistas do passado, sem seres réplica de nenhum.
Tu és guardiã do fado. Preserva-lo, como
valioso que é, sem precisares de roupagens inovadoras ou toques de modernidade.
Escreves fados tão bonitos para ti e para outros e escolhes os que cantas com
critérios de aço e poesia. O teu sorriso é tão aberto que te vemos o coração. E
é certamente por isso que quando cantas “até o mal se enternece”.
Como é usual fazermos quando encontramos uma divindade na rua, não nos sai muito mais do que um És a minha favorita. A verdade é que gostava de te ter dito tudo isto. E de te fazer um aceno e no derradeiro momento levantar a voz e rematar com um Ah Fadista.
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