O Lisboeta não sabe a sorte que tem em poder contar com o autocarro
da Carris que o leva e traz a qualquer ponto da cidade, sentadinho,
confortável e entretido. Quase sempre.
É verdade que há momentos de fazer inveja aos senhores da
Conserveira Nacional. O condutor que veste a camisola, amarela por
sinal, é aquele que às oito e cinquenta da manhã, pára ali em
Santa Apolónia e deixa entrar as trinta pessoas que estão na fila.
Espera pela senhora que vem ali a correr ao fundo da rua e fecha a
porta. Ainda não. Vem ali mais dois jovens a acenar e talvez caibam.
Agora sim. Rabos para dentro. Cuidado que a porta vai fechar. Carris,
a enlatar desde 1872.
Nas horas de ponta, como o passageiro não vai confortável, é
entretido. É a velhota que grita a meio do corredor: cheguem-se lá
para trás. É o rapaz de boné que, magnânimo, anima autocarro
inteiro com o grande som que tem no telemóvel e que põe a tocar o
mais alto que consegue. É aquela senhora a falar de coisas
inadiáveis, como a receita de bolo de iogurte, com a irmã pelo
telemóvel. É aquele não-me-toques com ar de sensível que vai ali
a fazer cara de enjoado. Se queria paz, fosse de táxi.
É a mistura de cheiros. Os lavadinhos e perfumados. Os sujinhos e
perfumados. Os só sujinhos. Os que trabalham no restaurante indiano.
Os pobres que suam tanto que não há banho que lhes valha. Os que
cheiram a chichi de gato. Os que cheiram a naftalina.
É o irmos todos ali em comunhão, a entrelaçar braços, a cheirar
sovacos e a sentir as respirações dos outros. É a travagem que nos
faz enfiar o nariz no cabelo nevado de caspa desta senhora. Ou sentar
no colo deste senhor de bigode amarelo e camisa encardida.
Mas não é com ironia que digo que viajar na Carris é bom. A hora
de ponta é um fenómeno mundial difícil de solucionar. Não é só
um problema dos autocarros amarelos.
Viajar na Carris é bom porque podemos ler confortavelmente sentados
no nosso lugar. Podemos simplesmente olhar pela janela e observar a
sempre bela Lisboa a passar depressa. Podemos ouvir a conversa do
casal que vai sentado à nossa frente.
Há quem aproveite o tempo em que anda no autocarro para coisas
práticas. Fazer malha ou renda. Organizar a mala. Comer. Cortar as
unhas. Por falar em cortar as unhas: não cortem as unhas em sítios
públicos.
A Carris faz parte de Lisboa. A paisagem urbana não seria a mesma
sem os amarelos a circularem pelas avenidas, na sua missão de
fazerem os Lisboetas chegarem onde querem.
Sem comentários:
Enviar um comentário