domingo, 30 de novembro de 2014

Já não mora aqui.






Esta semana a D. Leonor morreu.

A D. Leonor é a minha vizinha velhinha aqui do 1º esquerdo.

Quando me mudei, foi a primeira cara que conheci aqui do prédio. Tocou-me à campainha e apresentou-se com um sorriso. Queria saber como era da limpeza das escadas. Ela e a anterior proprietária do meu apartamento intercalavam. Uma semana lavava uma e na semana seguinte era a outra. Mirei aquela senhora de idade avançada e, antes que desse por isso, estava a prometer: “Não se preocupe. Limpo eu todas as semanas”.

Promessa que não cumpri. Se lavei as escadas todos os meses foi uma sorte. Claro, que a partir desse dia, sempre que me cruzei com ela, ouvi a frase: “Estas escadas estão uma miséria.”

A D. Leonor vivia sozinha. O marido morreu há uns dez anos. Não tinha gatos. Tinha um filho que vinha todos os fins-de-semana e a levava a almoçar fora. Nesse dia ela vestia uma roupa mais bonita, perfumava-se e penteava-se melhor. Nos outros dias ia para o Convívio.

O filho telefonava-lhe todos os dias. Facto que para ela era uma constante preocupação. Tinha que ter o telemóvel sempre disponível fosse a que hora fosse. Por isso, sempre que aparecia um postalinho a piscar no visor, tocava-me à campainha para saber se estava avariado. Certa madrugada, lá pelas seis da manhã, acordou-me preocupada, porque não conseguia ligar a maquineta e o filho podia querer falar com ela. Devo ter feito uma cara de tão poucos amigos que, no dia seguinte, ofereceu-me uma toalha de renda feita por ela. “Assim, mesmo quando eu morrer, vai lembrar-se sempre de mim.”

Um dia fez questão de me mostrar a sua casa. Cheia de bibelots e naperons. Com santinhos e terços pendurados nas paredes. As caixas dos medicamentos organizadas na bancada da cozinha. Os quartos muito arrumados e com colchas de renda feitas por ela.

A D. Leonor tinha uma cabeça óptima. Sabia sempre a quantas andava, a que horas passava o carteiro, não abria a porta a estranhos e espantava os Jeovás. Quando estava na varanda e eu ia apanhar a roupa da corda, oferecia-me sempre ajuda: “ Menina, posso não estar boa das pernas, mas as mãos estão muito bem.”

As pernas da D. Leonor eram o seu maior problema. Sempre com duas canadianas, descia e subia as escadas muito devagar. O que, por vezes, causava verdadeiros engarrafamentos. Uma fila de vizinhos atrás dela à espera ansiosos. Por isso, sempre que eu a avistava a meio da rua no seu caminho para casa, acelerava para lhe passar à frente. Saudava-a e dizia-lhe que ia com pressa.

Na semana passada o coração ficou fraquinho. O filho veio buscá-la para a levar ao hospital. E não voltou mais.

No dia em que morreu, quando cheguei a casa e olhei para as escadas, deu-me uma fúria lavadora. Agarrei na vassoura e na esfregona e ficaram a brilhar. Até lhe limpei a porta.

Porta que está agora tão fechada que vai precisar de ser empurrada com força para voltar a abrir. Fechada com os santinhos, os bibelots e os medicamentos na bancada da cozinha à espera de alguém que não volta. Já não há mais filas nas escadas nem ninguém atento à chegada do carteiro.
Um destes dias chegam uns vizinhos novos e eu vou-lhes falar da limpeza das escadas e mostrar-lhes a minha toalha de renda. E explicar-lhes que foi a D. Leonor que a fez. A D. Leonor, a vizinha que já não mora aqui.




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