domingo, 21 de dezembro de 2014

É Natal.







Nunca fiquei em Lisboa no Natal. Aquela noite de 24 para 25 de Dezembro é sempre passada lá na minha Várzea onde faz mesmo muito frio, mas onde o meu coração está sempre quentinho.
Por isso, não sei de nada. Não faço a mínima ideia de como são esses dois dias na capital mas, a julgar pelas últimas semanas, espero que tudo abrande.

É que a capital tresloucou. O espírito de Natal assustou-se e fugiu a correr.

Por todo o lado há lisboetas apressados com olhares desvairados, carregados de sacos e embrulhos a correrem para a loja mais próxima. De caminho atropelam-se uns aos outros, enquanto pensam que, para ao ano, não dão prendas a ninguém. Só aos miúdos. Ou então começam em Novembro. É isso. Começam em Novembro.

Filas de carros intermináveis, lentas e barulhentas. Dentro das viaturas caras de poucos amigos e mãos na buzina. Está mais que provado que as buzinadelas fazem os obstáculos desaparecer por magia e assustam os semáforos, que, passam imediatamente a verde. Ou talvez não. Juro por todos os santinhos que ontem de manhã em Campo de Ourique os semáforos, em sinal de protesto por tanto mau humor, mudaram para vermelho e assim ficaram. Depois de quinze minutos à espera, os automóveis lá foram avançando pela Rua Ferreira Borges. Mas os semáforos, mostrando firmeza de carácter, vermelhos continuaram.

Os lugares de estacionamento são uma miragem. Durante o dia, as compras. Durante a noite, os jantares de Natal. Na sexta-feira passada, quando cheguei aqui ao bairro, andei uma hora às voltas à procura de um buraquinho para enfiar o meu carro. Quando finalmente encontrei, um chico-esperto ignorou-me, chegou e estacionou. Com a alma cheia do espírito da época,aproximei-me e pedi-lhe satisfações. E ele deu-me. Eu só estava a fazer pisca parada na rua e aquele lugar era público. Um ser de elevado estatuto moral a espalhar energia natalícia.

No meio de isto tudo, penso sempre: ainda bem que me vou embora. Quando eu voltar, já toda a gente recebeu os seus presentes, esteve com a sua família e andarão com um sorriso nos lábios. Depois do Natal poderemos todos ser felizes outra vez.

Até lá, vou tentar sorrir a todas as pessoas que vierem contra mim, piscar o olho aos semáforos teimosos e tolerar ladrões de estacionamento. É a minha prenda de Natal para os alfacinhas.

Boas festas.

domingo, 14 de dezembro de 2014

Sai uma bica.


A bica é o combustível que faz andar Lisboa. O lisboeta atesta-se de cafés como quem atesta o carro. Não fora o mágico carburante e esta cidade seria a capital da procrastinação.
Ainda o sol não abriu bem o dia e os balcões de todos os cafés de Lisboa já estão rodeados com gente dormente à espera da chávena milagrosa que os trará de volta à vida. Em chávena fria, curta, com adoçante, cheia, normal, em chávena escaldada, sem começo, sem açúcar mas com colher, italiana, há uma fórmula certa para cada alfacinha caprichoso e dependente. Por trás do balcão, o empregado anda numa lufa-lufa para dar a cada cliente a sua dose matinal na medida certa. Das seis e meia às nove da manhã há-de ouvir-se em cada um destes estabelecimentos comerciais o barulho da máquina a moer os grãos, dos pires a assentarem no vidro do balcão, das colheres pequeninas, da torneira do vapor e da voz do garçon a gritar: “Dá uma bica.”
Ao longo do dia as chávenas dançam sem parar no balcão e nas mesas. É que a bica toma-se como um medicamento em horários rigorosos. A saber: de manhã, a meio da manhã, depois do almoço, a meio da tarde e depois do jantar.
Os mais dados a tremuras causadas pela circulação da cafeína no sangue, a partir de certa altura, batotam estas etapas com placebo. Bebem descafeinado. Mas alfacinha que se preze, bebe a bica a qualquer hora, e com cheirinho.

O lisboeta gere a sua vida social desdobrando-a em bicas.

“ Bebemos um cafezinho um dia destes.”
“Passa lá em casa ao fim de jantar para beber café.”
“Já bebeste a bica?”
“Pagas-me o café e ficamos quites.”


O precioso líquido é uma instituição digna de uma condecoração presidencial do 10 de Junho. Decrete-se já como património municipal. No meio desta crise que nos faz contar os tostões para comprar as prendas de Natal, enquanto houver uma moedinha para a bica, vai o lisboeta levando os dias com mais fôlego. Vai-se chegando ao balcão, com a alma conformada e confortada por ainda poder pedir: “É uma bica, se faz favor.”

domingo, 7 de dezembro de 2014

Alfacinhas há muitos.

Afinal porque é que os lisboetas são alfacinhas?

Reza a lenda.
Nem lenda, nem reza.

Perdeu-se nas brumas da memória a razão pela qual um habitante da capital se designa por alfacinha. E, se lhes perguntarem, os lisboetas respondem com estórias diversas, umas mais convincentes que as outras, sem que se possa chegar a uma origem comum. Cada alface, sua salada.

De todas as narrativas que ouvi, a minha preferida é aquela que conta que no século XIX os lisboetas tinham o costume de fazer piqueniques domingueiros na zona saloia. Vaidosos, vestiam os seus melhores fatos para o passeio. Atavam os seus laços ao pescoço e aí iam eles. Os saloios, que viviam da agricultura e estavam habituados a simplicidade, observavam estas personagens com olhos trocistas e afirmavam entre si que, com aqueles laçarotes presunçosos, os lisboetas pareciam umas alfaces.

Daí ao alfacinha, há-de ter sido um saltinho.

E se, durante décadas, chamar alfacinha a alguém, podia ser ofensivo, hoje travam-se verdadeiras batalhas verbais para se saber quem é descendente em linha directa da horta primordial.

É que alfacinhas há muitos.

Ser alfacinha de gema é ter ascendência lisboeta até à segunda geração. Pelo menos. É que isso de ter nascido na Maternidade Alfredo da Costa, não serve para convencer os mais ferrenhos. Alfacinha que é de gema tem uma avó da Mouraria, outra de Alfama e bisavô, quando muito, de Benfica.

Aqueles que têm terra fora de Lisboa, para passar o Natal, são uma espécie de alface embalada e pré-lavada. Falta-lhes o viço de gerações sucessivas a florescer por essas colinas fora.

Há as couves-flor, como eu, nascidas e criadas fora desta grande alface, mas com dupla nacionalidade. Que reclamamos o direito a ser tão alfacinhas como os de gema. Com o coração dividido, mas sempre a suspirar de saudades de uma Lisboa antiga que nunca vimos. Sempre dependentes desta luz boa para florescer.

Estou em crer que Lisboa é cidade generosa que acolhe a todos como seus rebentos. Não lhe interessa quando chegamos. Desde que a levemos connosco para onde formos. No fundo é como Almeida Garrett escreveu n' As Viagens na Minha Terra: "Pois ficareis alfacinhas para sempre, cuidando que todas as praças deste mundo são como a do Terreiro do Paço."


domingo, 30 de novembro de 2014

Já não mora aqui.






Esta semana a D. Leonor morreu.

A D. Leonor é a minha vizinha velhinha aqui do 1º esquerdo.

Quando me mudei, foi a primeira cara que conheci aqui do prédio. Tocou-me à campainha e apresentou-se com um sorriso. Queria saber como era da limpeza das escadas. Ela e a anterior proprietária do meu apartamento intercalavam. Uma semana lavava uma e na semana seguinte era a outra. Mirei aquela senhora de idade avançada e, antes que desse por isso, estava a prometer: “Não se preocupe. Limpo eu todas as semanas”.

Promessa que não cumpri. Se lavei as escadas todos os meses foi uma sorte. Claro, que a partir desse dia, sempre que me cruzei com ela, ouvi a frase: “Estas escadas estão uma miséria.”

A D. Leonor vivia sozinha. O marido morreu há uns dez anos. Não tinha gatos. Tinha um filho que vinha todos os fins-de-semana e a levava a almoçar fora. Nesse dia ela vestia uma roupa mais bonita, perfumava-se e penteava-se melhor. Nos outros dias ia para o Convívio.

O filho telefonava-lhe todos os dias. Facto que para ela era uma constante preocupação. Tinha que ter o telemóvel sempre disponível fosse a que hora fosse. Por isso, sempre que aparecia um postalinho a piscar no visor, tocava-me à campainha para saber se estava avariado. Certa madrugada, lá pelas seis da manhã, acordou-me preocupada, porque não conseguia ligar a maquineta e o filho podia querer falar com ela. Devo ter feito uma cara de tão poucos amigos que, no dia seguinte, ofereceu-me uma toalha de renda feita por ela. “Assim, mesmo quando eu morrer, vai lembrar-se sempre de mim.”

Um dia fez questão de me mostrar a sua casa. Cheia de bibelots e naperons. Com santinhos e terços pendurados nas paredes. As caixas dos medicamentos organizadas na bancada da cozinha. Os quartos muito arrumados e com colchas de renda feitas por ela.

A D. Leonor tinha uma cabeça óptima. Sabia sempre a quantas andava, a que horas passava o carteiro, não abria a porta a estranhos e espantava os Jeovás. Quando estava na varanda e eu ia apanhar a roupa da corda, oferecia-me sempre ajuda: “ Menina, posso não estar boa das pernas, mas as mãos estão muito bem.”

As pernas da D. Leonor eram o seu maior problema. Sempre com duas canadianas, descia e subia as escadas muito devagar. O que, por vezes, causava verdadeiros engarrafamentos. Uma fila de vizinhos atrás dela à espera ansiosos. Por isso, sempre que eu a avistava a meio da rua no seu caminho para casa, acelerava para lhe passar à frente. Saudava-a e dizia-lhe que ia com pressa.

Na semana passada o coração ficou fraquinho. O filho veio buscá-la para a levar ao hospital. E não voltou mais.

No dia em que morreu, quando cheguei a casa e olhei para as escadas, deu-me uma fúria lavadora. Agarrei na vassoura e na esfregona e ficaram a brilhar. Até lhe limpei a porta.

Porta que está agora tão fechada que vai precisar de ser empurrada com força para voltar a abrir. Fechada com os santinhos, os bibelots e os medicamentos na bancada da cozinha à espera de alguém que não volta. Já não há mais filas nas escadas nem ninguém atento à chegada do carteiro.
Um destes dias chegam uns vizinhos novos e eu vou-lhes falar da limpeza das escadas e mostrar-lhes a minha toalha de renda. E explicar-lhes que foi a D. Leonor que a fez. A D. Leonor, a vizinha que já não mora aqui.




domingo, 23 de novembro de 2014

Outono.






O Outono já chegou há uns tempos. Veio assim chegando de mansinho e, quando dei por ele, já andava de galochas e guarda-chuva em riste enfrentando chuvas grossas e ventos ensandecidos.
Lisboa inundou até aos joelhos. Verdadeiros rios correram pelas ruas fazendo o Tejo e o Presidente da Câmara corar de vergonha. As sarjetas, essas traidoras, estavam entupidas e não vazaram as águas que o céu mandou.

No meio desta agitação, quase nem via os detalhes de Lisboa que, sendo sempre belos, no Outono, ganham uma aura mais arrebatadora e propensa ao suspiro.

O clássico dos clássicos é o homem das castanhas. Com o seu carrinho parado à entrada da Rua Augusta podia ser um postal da cidade. Vende castanhas quentes e boas. E cheirosas. Um aroma quentinho que se espalha ao redor, entra pelas narinas e nos faz aconchegar o cachecol mais ao pescoço e sorrir. Compramos uma dúzia e ele oferece uma extra. Dantes vinham num canudo feito com folhas arrancadas das Páginas Amarelas, mas agora, vêm nuns saquinhos de papel que trazem outro agarrado para deitar as cascas. Muito práticos. Pouco dados a imagens românticas. Porém, nada nos pode tirar os dedos enfarruscados e o sabor fumado e doce. As castanhas assadas sabem a outono.

Com a mudança da hora começamos a sair do trabalho ao mesmo tempo que o anoitecer chega. Os candeeiros pombalinos acendem-se mais cedo. E é nesta altura que os voltamos a ver desde o Inverno passado. Enxergados cá de baixo, altivos no desamparo da sua solidão, parecem vigias atentos dos movimentos nocturnos da cidade. Iluminam-nos os passos e aquecem o caminho.

O Outono é um ilusionista de Lisboa. Da sua cartola parda tira imagens mágicas como a da chuva miudinha a cair sobre o Tejo vista das escadas do Cais das Colunas. Ou as nuvens a passarem ameaçando a Igreja da Graça. Ou os carris dos eléctricos a brilhar encaixados nos paralelos escuros. Ou as folhas das árvores a caírem em amarelo e castanho no chão do Jardim da Estrela. Ou os prédios a reflectirem-se no lioz molhado do chão do Terreiro do Paço. Ou as iluminações de Natal suspensas sobre as ruas, apagadas, à espera da abertura da sua época oficial.

O Outono é estação bonita que saca a nostalgia até das almas mais empedernidas. É por isso que chove. Lágrimas pela tristeza do fim do Verão e a chegada do frio. Lágrimas que aconchegam vistas deste sofá a caírem do lado de fora daquela janela.


domingo, 16 de novembro de 2014

Ah Fadista!







Chorem fadistas. A Severa morreu.

A trigueira mais bonita que brotou na Madragoa, teve no nome a sina de uma vida desalmada.
Severa nasceu. Maria Severa Onofriana, filha de um taberneiro e de uma prostituta. Era o ano de 1820. Cresceu nas ruas e nas tabernas e demasiado nova seguiu as pegadas profissionais da mãe.

Cedo o fado cruzou o seu destino. Chamavam-na de Meretriz Cantadeira. Moça bonita, de pele branca, magra sem ser franzina, peito farto, olhos de azeitona e cabelos longos cor de asa de corvo. Da sua boca pequena saia um potente vozeirão que soava da Mouraria ao Bairro Alto. Nas ruas estreitas dos bairros velhos de Lisboa, onde estivessem boémios, estava a Severa a cantar o fado.

Chorem guitarras. A Severa morreu.

Mulher de má vida, amante de muitos, nunca largou a sua profissão. Gostava de ir às touradas no Campo de Santana e não virava a cara a uma boa zaragata. O Conde de Vimioso, homem de touros e paródia, pôs-lhe a vista em cima e quis tomá-la por sua. Mas não se toma posse de um coração independente. Esperta, aproveitava os favores do conde para andar de vida airada, prestando favores mediante pagamento aos que por ela procuravam. Até que um dia, o conde, homem garboso e pinga-amor, se apaixonou por uma cigana e a deixou.

Chorem tabernas. A Severa morreu.

Dizem que cantou em salões da aristocracia lisboeta. Mas onde se sentia bem era nas tabernas mais vadias da capital. Não bebia, mas de cigarro na mão, seduzia a todos com a sua voz.
Não se sabe quem nasceu primeiro, se a Severa se o Fado. Mas é certificado por especialistas em saudade, cientistas do destino, que um não poderia ter existido sem o outro. A melodia ganhou contornos de tristeza no brado dela, que, por sua vez, era o alento para soltar a sua alma em melodia.

Chora Lisboa. A Severa morreu.

Sobre ela escreveram-se romances, redigiram-se teses e nasceram fados. Sobre ela, ainda hoje se escutam borburinhos na Mouraria. Sobre ela fez-se o primeiro filme sonoro português em 1931, que, pasmem-se, teve 200 mil espectadores.
A Severa corre nas veias de Lisboa. É um mistério mal revelado que se canta hoje em todo o lado.
Morreu aos 26 anos, tuberculosa, abandonada num reles bordel na Rua do Capelão, em Novembro de 1846. Pediu para ser sepultada sem caixão na vala comum do Cemitério do Alto de São João. Reza a lenda que as suas últimas palavras foram: “Morro sem nunca ter vivido”. Mal sabia que nascia para a imortalidade e que, se escutarmos com atenção, a podemos ouvir em cada esquina de Lisboa.

domingo, 9 de novembro de 2014

Coração ao Largo.


Todo o lisboeta que se preze, tem a sua praceta, a sua praça, o seu jardim ou o seu largo.
Eu, lisboeta por vocação, tenho o meu largo que fica mesmo aqui ao fundo da minha rua.

É o Largo do Conde-Barão. Sujo, feio, abandonado e degradado à vista desarmada. Encantador e cheio de vidas, visto pelos meus olhos.

Ali jazem os restos murais dos Armazéns do Conde-Barão. Em tempos loja popular de mercadorias acessíveis, que chegou a ter sucursais em todo o país. Hoje um esqueleto feio de cimento onde os pombos habitam e se colam cartazes sobrepostos que anunciam filmes ou concertos.

Ao lado, o Palácio do Conde-Barão do Alvito, que deu nome ao largo. O conde, que também era barão, ali morou até ao terramoto de 1755. Dia após o qual fez as suas malas e rumou com a família para zonas menos dadas a tremuras. O magnífico palácio cheio de janelas voltadas para o largo tem o telhado tombado e está muito degradado. Esconde umas traseiras com um terreno cheio de mato que em tempos deve ter sido um jardim daqueles mesmo formosos.

Todavia, no meio dos monos falecidos, todos os dias circula muita gente, desde aquelas horas em que a manhã ainda não acordou até áquelas horas em que a noite já se deitou sobre a cidade.

A Julinha dos jornais abre o quiosque antes das sete. Sempre animada e de sorriso fácil, dá os bons dias a quem passa e vende o jornal, a revista da moda e bilhetes da Carris.

A loja do Indiano abre mais tarde e vende um pouco de tudo. Das nove da manhã até à meia-noite, ali se vendem ovos, álcool e cigarros, arroz e fruta, álcool e cigarros, lâmpadas e panos de cozinha e álcool e cigarros.

Do outro lado, o Kebab Ali House que, dizem por aí, tem as melhores chamussas de Lisboa e eu quase que juro que é verdade.

Há figuras que cruzam o largo diariamente. Nos bancos de jardim com a madeira apodrecida está sempre o senhor do cumprimento. A qualquer hora que eu passe saúda-me. A qualquer hora que eu passe está sempre ali. Mesmo quando chego muito tarde a casa. Um dia digo-lhe que quando passo tardiamente é a sua presença embriagada ali no banco, que me faz sentir que já estou em casa.

Há o João. O João sabe tudo o que se passa no largo. Traz-me o gás a casa e pergunta-me sempre se eu estou bem. Ele sabe quais são as casas que estão para arrendar, de quem é o carro que está ali a tapar a passagem e se vai chover ou não.

Há o senhor da loja das chaves que passa o dia a mirar as meninas que passam. Há a louca que pisca o olho a qualquer um e que se apresenta como Miss Conde-Barão. A rapariga que passeia o cão com ar ensonado todas as manhãs. Os rapazes que ao fim da tarde bebem imperiais na esplanada.

Na altura das festas académicas enche-se o largo de capas pretas e eferreás banhados a cerveja. Até de madrugada hão-de cantar as modinhas todas do Quim Barreiros, gritar pelos seus clubes de futebol e vomitar todos os cantos do largo.

E eu. Todas as manhãs a correr para o carro. Todas as tardes a regressar vagarosa a casa. Aqui ao primeiro andar deste prédio pombalino, com entrada mesmo ali ao fundo da Rua da Boavista, no Largo do Conde-Barão.

domingo, 2 de novembro de 2014

1755.









Passam hoje 259 anos e um dia desde que Lisboa sofreu o terramoto dos terramotos.
Reza a lenda e dizem os entendidos que a terra tremeu numa magnitude de 9 na escala de Richter e que o abalo se fez sentir no norte de África e no sul de França. A verdade é que o senhor Richter só nasceu no ano de 1900, o que torna a medida exacta da catástrofe difícil de definir em escalas. Porém, não restem dúvidas, foi a desgraça das desgraças.

Era o Dia de Todos os Santos. Em cada casa católica e nos altares das igrejas, velas acesas invocavam o dia santo de guarda. O Outono já ia firme e estava frio. As lareiras estavam acesas já há algum tempo quando às nove e meia da manhã as entranhas da terra começaram a abanar como se fosse o fim dos tempos. A ira divina abatia sobre a cidade. Incêndios cresceram velozes e indomáveis pelas ruas estreitas da metrópole. Edifícios públicos, palácios, palacetes e igrejas, a nova Ópera acabada de inaugurar, o Paço da Ribeira, todos derrocaram espalhando o pânico e matando milhares de almas.

Ali na zona do Sacramento, desabaram o convento dos Trinitários e o das Carmelitas, que é como quem diz, caiu o Carmo e a Trindade. Cada um dos conventos com missa a decorrer, estavam cheios de fiéis que ficariam debaixo dos escombros daquelas enormes construções. Foi uma das tragédias da tragédia. Nunca mais a alma lisboeta se esqueceu de tal. E para que a memória se lembre, cair o Carmo e a Trindade será sempre sinónimo de coisa grave, de uma consequência inesperada, uma ironia da vida.

Depois do terramoto, o maremoto. Um tsunami entrou por Lisboa e afogou do Terreiro do Paço até à Estrela. Água que nunca mais parecia parar. Arrastando o que o terramoto poupara. Diz-se que uma sucessão de três ondas gigantes avançou do Tejo e foi até 250 metros de distância subindo a cidade. Quando chegou a Campo de Ourique parou. Ficou ali, vai não vai. Rés vés Campo de Ourique, como se usa ainda hoje dizer sempre que por milagre algo terrível não acontece.

A cidade demorou anos a recuperar. Lamberam-se as feridas. Enterraram-se os mortos e estancaram-se as epidemias causadas pela insalubridade que se espalhou endémica pela capital.

O terramoto foi o epicentro de novas formas de pensar. De Voltaire a Kant, serviu desde mote para poemas a questão existencial. Fúria divina ou da mãe natureza? A arquitectura deu um salto em busca de formas de construção preparadas para tremores de terra. O Marquês de Pombal tornar-se-ia o eterno maestro da cidade nova.

Na reconstrução, exploraram-se todos os recursos. Ali onde hoje é o Mercado do Forno do Tijolo, estava um cemitério mourisco cuja terra era argilosa. Faltando barro para fazer tijolos, ali estava aquele mesmo à mão de semear. Junto com a argila lá iam as ossadas dos mouros para o forno fazer tijolo para reconstruir a cidade.

Tudo isto se foi espalhando e contando ao longo das décadas. Pode ser tudo verdade. Pode ser tudo mentira. Há muitos factos que se perderam para fazer tijolo. Há muitas estórias que ficam rés vés da verdade. Mas se alguém negar o terramoto, caia já o Carmo e a Trindade.

domingo, 26 de outubro de 2014

A Portela.







Um dos meus sítios mágicos de Lisboa é o Aeroporto Internacional de Lisboa, mais conhecido por Aeroporto da Portela. Pelo-me por dar lá um saltinho. E não tem que ser para viajar.

Aquele emaranhado de gente que chega ou parte ou espera tem sobre mim um fascínio misterioso. Tudo ali é temporário. Ninguém permanece.

Chegadas.
Chegam em grandes molhos para passar férias, para fazer grandes negócios, para trabalhar, para regressar a casa. Uns com a alegria escancarada no rosto. Com roupas estranhas, tranças no cabelo e malas grandes e cheias. Outros, sérios e impenetráveis. Olhares sisudos que não me deixam perceber se vêm para para uma festa ou para um funeral. Há sempre olhos molhados pelo aconchego do reencontro.

Partidas.
Partem em bandos. Com tons avermelhados de quem esteve aqui a aproveitar o nosso sol e regressam com a alma iluminada pela vitamina D aos seus países de pouca luz. Nas mochilas, toalhas com o Galo de Barcelos estampado, imans de frigorífico em forma de Torre de Belém e Fado. Outros abalam daqui em busca do futuro que o país não lhes pode dar. Vão para a Europa civilizada ou para a África dos ovos de ouro. Misturam-se as lágrimas de quem fica com as lágrimas de quem vai no momento da separação. Há sempre olhos molhados pelo abandono da despedida.

Depois perde-se-lhes o rasto. Espreita-se um bocadinho da história sem nunca se saber o começo nem vislumbrar o fim.


O Aeroporto da Portela foi inaugurado em 15 de Outubro de 1942. Logo a seguir abriu o Aeroporto de Cabo Ruivo. Os voos transatlânticos eram feitos por hidroavião desde os anos 30. Os aviões poisavam no Tejo ali à beira de onde hoje está o Parque das Nações. Os passageiros vinham de automóvel pela Avenida Entre-os-Aeroportos que agora se chama Avenida de Berlim e iam apanhar os voos de ligação ao resto da Europa à Portela. Muito prático. Para a época.

Hoje, só ficou a Portela. A sete quilómetros do centro da cidade, é de fácil acesso. Tem o parque de estacionamento mais caro da cidade. Talvez por isso, um clássico das Chegadas, seja ver os automóveis a circular naquela espécie de rotunda muito devagarinho até pararem num sitio onde a polícia não os possa topar. E ver a polícia a circular muito devagarinho para os apanhar e por a andar.

Houve já várias tentativas de tirar o aeroporto dali. Que é pequeno. Que é demasiado dentro da cidade. Que pode ser perigoso ter os aviões a aterrarem tão perto das habitações. Mas que sabe bem aterrar e estar a um saltinho de casa, sabe.

Gosto de lá ir. Gosto de lá ir buscar os amigos que chegam. Gosto de lá ir abraçar os amigos que partem. Gosto de lá ir e partir. Gosto de lá ir porque regresso. É tão bom ver a Portela da janela do avião e pensar, cheguei a casa.

domingo, 12 de outubro de 2014

Centro Cultural.

Quem somos? De onde vimos? Para onde vamos?

Mal passo a porta do Centro Comercial do Martim Moniz passo a ser a estrangeira que vem da velha Europa e que entra em continentes longínquos e misteriosos. Tudo aquilo que eu acho que sei se altera instantaneamente. Aqui somos outros. Aqui somos os outros.

Ou talvez não.

Durante anos passei no lado de fora desta porta e fui adiando a entrada. A verdade é que tinha um certo acanhamento. E receio. Um receio absurdo de que me fizessem um mal que eu não sabia bem qual seria. Um mal qualquer. Como aquele que o Bicho Papão me teria feito em criança. Caso o Bicho Papão existisse. Talvez venha daí um medo que nos acompanha o resto da vida: das coisas que não existem.

Um certo acanhamento por me sentir ingénua. Por não saber distinguir o cheiro quente do cominho moído do perfume melado do açafrão. Por não enxergar a diferença entre massa de arroz e massa de ovo.

Mas um dia chegou em que me enchi de coragem e entrei. A motivação foram os cardamomos. Um basmati sem cardamomos perde a magia. E eu, que queria mesmo fazer truques na cozinha, lá me afoitei a entrar.

Pessoas. Lá dentro a circular absortas nas suas inadiáveis tarefas. Pessoas.

Pessoas. Todas as etnias que vieram do lado de lá do mar e por aqui desaguaram. Todas as cores que o mundo tem aqui se cruzam. Pessoas.

Lojas. Lojas apinhadas de toalhas de mesa, turcos, pijamas, camisolas da selecção, pantufas, meias, óculos de sol, cintos da moda, cuecas, relógios de fiel imitação e cachecóis. Tudo mais barato. Tudo ao desbarato. Lojas.


Cheiros. Odores quentes que cheiram a cores fortes. Cravinho, pimenta, canela, anis estrelado, cardamomo, cominho, coentro, malagueta, baunilha, folha de caril, noz-moscada e incenso. Cheiros.

Lojas. Lojas com saris, kimonos, roupa de dança do ventre, turbantes, pashminas e outras fatiotas de nomes enigmáticos e bonitos. Lojas.

Caixas. Gigantes, cheias de secretas mercadorias. Encostadas em cada canto em montanhas precárias e periclitantes. Chegaram mesmo há bocado do outro lado do mundo e estão já de saída para se espalharem pelos quatro cantos da cidade. Caixas.

Lojas. Arroz, massa chinesa, óleo de palma, tamarindo, banana-pão, peixe seco, gengibre, pato fumado, hóstias de camarão, couscous, picle de manga e conservas de lichias. Lojas.

Línguas. Uma babel na Mouraria, bairro onde nasceu o fado, um dos pilares da divulgação do Português. Letras estranhas, palavras adocicadas, ásperas, como se soassem a saudades de longe. Na hora de comprar o que me safa é a universalidade do sorriso. Línguas.

Tão feio por fora. Tão vivo por dentro.

Dessa primeira ida, lembro-me que trouxe os cardamomos, caril, arroz e muitos saquinhos de especiarias que nunca cheguei a usar.

Agora até lá vou e saio sem comprar nada. Vou porque sim. Ao fim de um dia de trabalho, quando não sei para onde vou, vou por ali.

domingo, 28 de setembro de 2014

A minha bela lavandaria.


Que Lisboa é cidade de amizade instantânea e conversa fácil já eu sei há muitos anos. Cá na capital, duas ou mais pessoas, mais de dois minutos, sentadas ou em pé, paradas e em espaço limitado, é a dosagem certa para receita que começa em cordialidade e acaba em camaradagem. Na paragem do autocarro, a fumar à porta dos prédios, na sala de espera dos dentistas, na fila dos Correios e até em alguns elevadores de longo curso, é ver amenamente as cavaqueiras a pegarem em lume brando. Não há lisboeta sem opinião, visão ou julgamento e a quem, no seu caso, não lhe tenha acontecido, numa certa ocasião, uma coisa muito interessante, que não esteja disposto a partilhar com detalhe, humor ou drama, com o rosto desconhecido que se lhe parou à frente.

E não há rede social que concorra com estes encontros. É que apesar da moda das selfies, quem não vê caras, ao vivo, não vê corações, como diria o Sérgio Godinho se tivesse escrito a tal canção tão bonita nesta época do virtual.

Esta semana descobri um novo local para fazer amigos. A lavandaria self-service cá do bairro.

Já tinha visto estes estabelecimentos comerciais a cogumelarem pela cidade, mas, sendo eu orgulhosa detentora de uma máquina de lavar a roupa de tambor de 7Kg e de uma máquina de secar caríssima, a minha melhor amiga quando a chuva chove semanas seguidas, sempre olhei com um certo desdém para a sua clientela. Porém, cuspir para o ar é muito perigoso e lá fui eu na quarta-feira parar à lavandaria que abriu há pouco tempo ali ao principio da rua.

Entrei a cogitar que ia só para desenrascar e nunca mais voltava. Passado cinco minutos estava já a projectar as melhores fotografias que iria tirar à minha maquinaria caseira para vender no OLX. Descobri um mundo novo admirável. Em cinquenta minutos e por poucos euros lavo a roupa, com o mesmo detergente do Sheraton, disse o senhor da manutenção, seco e ainda a dobro naquela mesinha fantástica que eles lá puseram. Se aquelas máquinas passassem a ferro, mudava-me para lá.

Mas o melhor de tudo, como sempre e em tudo, não são as máquinas, são as pessoas. Ali dentro não há silêncios. Nem tempo para ler livros ou pensar na vida. É uma espécie de reunião de conversadores anónimos. Entramos na conversa enquanto a roupa entra na máquina. Alguém ajuda com as instruções e forma de pagamento e daí para a frente já não há forma de fugir. Nos 30 minutos em que a roupa gira dentro do olho de vidro gigante a conversa é inevitável. Fala-se de nada. Fala-se de tudo. Fala-se. Enfia-se a roupa lavada e a cheirar bem na máquina de secar e fala-se. Tira-se a roupa seca e alguém se oferece para ajudar a dobrar. Mudam as pessoas com as mudas de roupa e a conversa segue lá dentro em vozes diferentes pela tarde fora. Se for lá agora, ainda está lá a mesma conversa.

Desde esse dia, quando volto para casa e sinto o cheiro a roupa lavada que vem lá do cimo da rua, subo as escadas a correr e vou ver ao cesto da roupa se já lá tenho que chegue para fazer uma máquina. Uma nódoa nas calças passou a ser recebida com um sorriso. E torço para que a minha máquina não tenha conserto.

Depois espreito pela varanda e vejo o meu estendal vazio e fico com remorsos. Como posso ser
assim tão fracamente infiel ao património que é a roupa estendida nas cordas? Nunca mais lá volto.

Só quando voltar a cair o café no tapete da sala, que não cabe na máquina cá de casa.

Oops.

domingo, 14 de setembro de 2014

O regresso.

Estou atrasada. Estou muito atrasada. Sou como o coelho da história da Alice e vou chegar atrasadíssima.


Subir a Calçada do Combro quando falta um breve quarto de hora para as nove da manhã, faz-me acreditar que todos os dias, quando a cidade acorda, traça um plano de barreiras para fazer o automobilista lisboeta chegar atrasado e com os nervos em frangalhos ao trabalho.

Da Rua do Poço dos Negros ao Camões, há-de o Elétrico 28, que vai invariavelmente à minha frente, parar sete vezes.

Três nas Paragens para saírem e entrarem passageiros, que, se correr como o previsto, compram o bilhete ao guarda-freio, que não pode conduzir e fazer trocos ao mesmo tempo.

Duas porque os carros estão mal estacionados e um elétrico não ultrapassa. O elétrico apita. O dono do carro não vem. O elétrico apita de novo. O dono aparece com um ar entre o envergonhado e o esbaforido e lá desbloqueia a passagem.

Uma por causa da camioneta que está parada a descarregar caixas de vegetais para o super-mercado e o elétrico não ultrapassa.

Uma outra vez por causa da velhinha que atravessa a rua calmamente fora da passadeira. Porque ela já atravessava ali naquele sitio antes do trânsito ser o trânsito.

Com sorte, chego ao Camões e ultrapasso o elétrico lá. Depois é só voar até à Graça. Se os semáforos ajudarem. E se não apanhar outro elétrico mais à frente.

Contudo, mesmo que os semáforos se abram num verde esplendoroso à minha passagem, hei-de penar na Baixa. As passadeiras da Rua Augusta são muito democráticas. Cada peão exerce o seu direito de decidir se atravessa ou não ao sinal vermelho. Uns acham que sim. Outros que não. Outros, indecisos, estão no passo-não-passo.

Uma velhinha atravessa a rua calmamente fora da passadeira. Porque ela já atravessava ali naquele sitio antes do trânsito ser o trânsito.


Após o grande feito de chegar à Rua da Madalena sem ter atropelado ninguém, é sempre um prazer desvendar a Sé. A Sé e os grupos de turistas que seguem o guia com o guarda-chuva fechado a apontar para o céu e que me faz sinal para parar para que possam todos atravessar a estrada em segurança. Com um sorriso condescendente lá os vejo a passearem serenos em frente a mim e depois sigo. Para parar logo a seguir, pois o autocarro em que eles chegaram, está a fazer manobras para estacionar.


Avanço.


Uma velhinha atravessa a rua calmamente fora da passadeira. Porque ela já atravessava ali naquele sitio antes do trânsito ser o trânsito.


Cerca Moura. Turistas à beirinha do passeio à procura do ângulo perfeito para a fotografia mais
linda de Lisboa. Talvez desçam do passeio. Talvez não. Talvez eu trave a tempo. Talvez não.

Uma velhinha atravessa a rua calmamente fora da passadeira. Porque ela já atravessava ali naquele sitio antes do trânsito ser o trânsito.

Calçada da Graça. Largo da Graça. Aqui a cidade acordou há horas. Carros em segunda e terceira fila. Para. Arranca. Cargas e descargas. Para. Arranca. Tomada e largada de passageiros. Para. Arranca. Atenção crianças. Para. Arranca.

Várias velhinhas atravessam a rua calmamente fora da passadeira. Porque elas já atravessavam ali naquele sitio antes do trânsito ser o trânsito.

Os minutos passaram em flechas. E quando paro o carro no parque está o rádio a dar o sinal de que são nove horas e eu finalmente consigo voar pelo meu pé até à porta do trabalho.


Agosto passou. Tudo regressou à normalidade.

domingo, 6 de julho de 2014

Porquê?


Lisboa está cheia de turistas. Vieram à procura do sol e por cá ficaram à espera a ver se ele chega.

É cientificamente provado que todo o turista está na idade dos porquês. Quer saber porque é que os sítios que visita são como são. Atento, repara em detalhes que mais ninguém vê e, assim sem mais nem menos, sai-se com um Porquê para o qual não estamos preparados.

O turista lisboeta, se assim se lhe pode chamar, não é diferente dos outros. Pergunta atrás de pergunta, faz-me pensar que se eu não fosse de cá, ia achar esta cidade muito estranha.

Porque é que não está sol?

Porque é que falam tão alto?
Porque é que têm a bandeira nacional pendurada em todas as janelas e varandas?
Porque é que não gostam de espanhóis?

Porque é que os carros buzinam tanto?
Porque é que as pessoas se vestem de tantas cores?
Porque é que são todos tão simpáticos?

Porque é que não está sol?

Porque é que há tantos prédios degradados no centro da cidade?
Porque é que deixam o lixo à porta dos prédios?
Porque é que o aeroporto é dentro da cidade?

Porque é que os bolos são tão pequenos?
Porque é que comem arroz com tudo?
Porque é que comem sempre frango?

Porque é que não está sol?

Porque é que o fado é triste se vocês até são alegres?
Porque é que bebem uns cafés tão pequeninos?
Porque é que comem tudo com coentros?

Porque é que não está sol?

Com tanta pergunta qualquer lisboeta acaba com questões existenciais. Já bastava o sol estar atrasado e ainda tem que dissertar acerca das buzinas, do aeroporto e do frango.

Como amante da cidade, o alfacinha lá vai explicando o melhor que sabe aquilo que é muitas vezes inexplicável. Sempre com um sorriso nos lábios e ar de entendido a resposta a todos estes porquês é tão óbvia que até custa a crer que os perguntadores não a sabem. Porque sim.

domingo, 22 de junho de 2014

Minha flor de Jacarandá.








Este texto seria tardio se o Verão não andasse a brincar às escondidas connosco e não teimasse em não se deixar descobrir. Porém, como estamos meteorologicamente no principio de Maio, é mesmo oportuno falar hoje desta árvore maravilhosa que enche os céus das avenidas de nuvens lilás. O Jacarandá.

Os Jacarandás de Lisboa são mimosos.

Mimosos porque mimam os olhos de quem passa com um tombar de flores frágeis, em cadência lenta e delicada, sobre a calçada portuguesa.

Mimosos porque assim se designam. Jacarandá-Mimoso.

Jacarandá é bonita palavra que quase se canta e adoça a boca e soa a coisa vinda do Brasil. E veio.
No começo do séc. XIX, o Professor Avelar Brotero, trouxe-os de lá e aclimatizou-os no Jardim Botânico da Ajuda. Depois espalhou-os pela cidade. E Lisboa, cidade habituada a outras cores e outras flores, entranhou-os sem estranhar. Pela Avenida D. Carlos I, no Largo do Carmo, no Campo Pequeno é bom de ver, nesta altura do ano, essas flores arroxeadas em forma de trompete a darem música de fundo à capital.

E não há poeta que goste de rimar esta cidade que deixe escapar esta maravilha. É que o Jacarandá põe-se mesmo a jeito para o poema. Desde a cor melancólica, ao cair celestial, passando pelo prenúncio de que o bom tempo está a chegar até às saudades que deixa quando desaparece, a flor do Jacarandá é musa de fazer frente à Ofélia do Pessoa.

Estas flores enlouquecem sazonalmente e particularmente um grupo de lisboetas designado comummente por automobilistas. É que o Jacaradá gosta tanto de morar em Lisboa e só tem seis semanas do ano para o demonstrar que envolve as suas flores de caramelo e cola-as às viaturas que estão estacionadas sob os seus ramos. É uma tentativa de prolongar as suas demonstrações de amor. O automobilista, quando chega depois de um dia de trabalho, cansado, e se depara com a sua viatura coberta de flores, leva aquilo muito a mal. É que um amor assim tão doce só sai com muita esfregadela e baldes de água com sabão.

E o peão também se queixa. É sempre difícil circular por uma calçada portuguesa que quer ir
connosco. Agarradinhas à sola dos sapatos, as flores acompanham-nos até ao infinito.

Mas nada disto é assim tão importante. Porque daqui por uns dias a doçura vai embora. Daqui a pouco já andamos todos a suspirar de saudades pintadas de violeta e a cantarolar a música do Vitorino “Flor do Jacarandá, cai leve no passeio, céu d'outro mar sonhado, chão de anilado estio.”

domingo, 15 de junho de 2014

O Santo Padroeiro.

Todos os anos em Junho é a mesma azáfama. Uns dias antes limpa-se a capela. Cortam-se as ervas do pequeno adro e lava-se o altar. Chama-se uma mulher casada para levantar a pedra debaixo do santo, porque reza a lenda que moça casadoira que a levante, ficará para sempre assim. À espera de noivo. Volta-se a colocar a pedra e põe-se o santo lá em cima.

Na sexta-feira faz-se uma sardinhada com toda a povoação. Vêm vizinhos de terras próximas. As últimas da música pimba a tocar no altifalante e é dançar até fartar.

No sábado enfeitam-se os andores. Vem a Rosa que tem jeitinho para a coisa. Cravos brancos para a Senhora de Fátima, cor-de-rosa para a Santa Rita, amarelos para a Santa Luzia e vermelhos para o santo.

À noite no único café da terra, encontram-se as caras que só se vêm nestes dias. Fala-se da vida e da crise. Dos que morreram. Dos que nasceram e de quem voltou de longe e construiu casa. Ou então bebem-se só uns copos e jogam-se umas cartas. Tudo à saúde do santo.

No domingo bem cedo os altifalantes da capela vertem músicas católicas. Em cada cozinha os cabritos estão a dar entrada no forno e as batatas vão logo a seguir. Faz-se o arroz quando se voltar da missa.

É dia de roupa nova. Quem a tem trata de a vestir. Quem não tem, vai ao guarda-vestidos buscar o melhor fato, aquele que vestiu para o casamento da filha da Custódia no ano passado. Passadinho a ferro está muito bem.

Por volta das onze horas todos os caminhos vão dar à capela. A banda da Boa Aldeia já está lá afinadinha. O Padre Paulo começa a missa. Não cabem todos na capela. Os mais jovens e os homens ficam cá fora. Sentam-se no muro ou encostam-se às paredes. Todos se abrigam do sol o melhor que podem. A esta hora ele bate com força. Mas o santo é milagreiro e há-de livrar a todos de um escaldão.

Depois da missa, em grupos de quatro pegam nos andores e faz-se a procissão à volta da terra. No dia seguinte muitas costas hão-de doer. Muitas promessas de que para o ano não me apanham a carregar com a Santa Rita, se hão-de fazer. Mas hoje não. Hoje carrega-se tudo com fé e devoção.

O cortejo sai e passa pelo Curro. Segue por dentro do povo. Os batoteiros cortam caminho pela Quelha da Gata. Os fiéis hão-de passar ao Cargueirinho, pela Farrapa e descer a estrada de volta à capela.

Agora é hora de voltar para casa e almoçar. As famílias juntam-se à volta da mesa e está feito mais um dia de Santo António. Na Várzea. A minha querida aldeia.


É sempre assim todos os anos. De doze para treze vou sardinhar em Lisboa e depois venho aqui juntar-me aos meus e festejar o meu Santo António. Que me perdoem os alfacinhas esta traição, mas para mim ele já era da Várzea antes de ser de Lisboa.


domingo, 8 de junho de 2014

Cheira a Lisboa.

A sardinha é a rainha das grelhas lisboetas. Até ao fim do Verão para qualquer lado que o vento sopre, leva consigo o cheirinho suculento das sardinhas a grelhar sobre o carvão.

Por essa Lisboa fora é ver a hora de almoço a aproximar-se e o fumo a invadir as ruas, a entranhar-se nas roupas e nos cabelos, a encher de volúpia as narinas e a criar nascentes de água da boca de quem passa.

Nos locais de trabalho combinam-se almoços, as vizinhas gritam de uma janela para a outra, os telemóveis tocam em combinanços, os velhotes vão mais cedo para ficarem com a melhor mesa. Tudo por uma sardinhada.

Gordinhas e a pingar é que se querem. Por cima de uma fatia de broa ou de outro pão grande qualquer. Com batatas cozidas com a casca. E salada. Porque a sardinha não vive sem os pimentos assados. Que por sua vez andam sempre com a alface e o tomate. Bom ou mau vinho. Temos o banquete lisboeta montado.

E é ver as toalhas de papel à porta dos estabelecimentos a dizer que há sardinha assada. E é ver os turistas a perguntarem onde podem comer sardines. E é ver os estabelecimentos comercias a diversificarem-se nas linguas e a escreverem nas mesmas toalhas: Today sardines.

E é ver a sardinha a virar símbolo da cidade alfacinha. Em pano, em cartão, para o frigorífico, em barro, para o porta-chaves. A sardinha é património saboroso de Lisboa e os lisboetas dão-lhe carinho.

Virá mais à frente a noite do Santo António em que Lisboa causa problemas na camada de ozono com tanto grelhador. Nessa noite, do grelhador mais sofisticado ao bidão cortado ao meio, tudo serve para agradar ao arraial.

O lisboeta tem um coração que palpita pela sardinha com uma força que não sente por mais peixe nenhum. É paixão que sobe ao céu da boca e os deixa com taquicardia. A sardinha retribui tanta emoção com ómega 3. E aqui está a prova que um amor tão arrebatador, pode ser saudável.

Agora que a época oficial da sardinha abriu é comer todas as que se puder. Para que da próxima vez que falar delas com alguém possa dizer: Estavam mesmo boas. Comi dez.

domingo, 1 de junho de 2014

Postal de Lisboa.


Lisboa é cidade dada ao postal. Da viela mais vadia à praça mais arejada. Do rio ao casario. A cidade é uma profusão de imagens em tons diversos e de ângulos tão incertos e improváveis que é inglória tarefa discorrer em longas palavras e compor em texto.

Ora vejam.

Um cacilheiro a cruzar o Tejo ao final da tarde sob o azul do céu já morno e a deixar um risco de espuma branca atrás de si.

Um gato malhado e gordo preguiçosamente deitado a dormitar no parapeito de uma janela aberta numa tarde solarenga.

Um prédio pombalino com janelas velhas de madeira com a tinta descascada. Cada janela uma cortina diferente. Algumas com vidros partidos. Umas lavadas outras sujas. Umas com gente dentro. Outras abandonadas.

Uma flor a crescer torta no telhado vermelho descorado de um prédio.

Uma pomba poisada numa das colunas do Cais das Colunas.

Um eléctrico, pode ser o 28, a passar numa rua estreita, pode ser as Escolas Gerais, cheio de turistas por dentro e com miúdos pendurados do lado de fora junto à porta traseira.

Um candeeiro antigo com a luz amarela a alumiar a rua vazia.

Um velhote sentado no banco a ver os putos a brincar no parque infantil do Príncipe Real.

Uma gaivota a mirar o rio poisada no cais em Santa Apolónia.

Um rosto esculpido pelo Vhils numa parede de uma escola que já não ensina atrás de um portão na Rua das Gaivotas.

A senhora das castanhas com o carrinho a fumegar ao fim do dia à entrada da Rua Augusta.

A chuva a bater no rio.

A ponte a cortar o azul luminoso.

A cidade a amanhecer azul.

A cidade a anoitecer azul.

Por hoje, são estes postais que vos mando.
Espero que vos vão encontrar bem.


domingo, 25 de maio de 2014

Olé.







Chegaram os espanhóis. Olé.

D. João IV está a dar voltas no túmulo desde sexta-feira e o obelisco dos Restauradores encolheu um bocadinho.

Vieram buscar a taça e conseguiram. De avião, de comboio, de autocarro e de carro encheram a cidade. Diz-se que são para cima de duzentos mil.

Ocuparam o aeroporto com artilharia pesada. Aviões nunca antes vistos em Lisboa aterraram na Portela, em Figo Maduro, em Cascais e falou-se em encerrar a A5 caso o espaço não chegasse.

Não restou um quartinho dos fundos nas águas furtadas da rua mais esquecida para dormir mais um espanhol. Sobre lotados, os prédios lisboetas incharam com tanto euro que os nuestros hermanos pagaram para alquilar la noche. Olé.

O Metro passou a avisar Por su seguridad no superan la franja amarilla. As lojas da Baixa guardaram os cachecóis da Selecção Nacional e exibiram nas montras os símbolos das equipas madrilenas. Todos os cafés têm o cartaz da Champions à porta em sinal de boas vindas e de que querem fiesta.

E fiesta houve. Cânticos de estádio na Rua Augusta. Espanhóis aos pulos. A Praça do Comércio transformada em campo da bola. Espanhóis aos gritos. Filas no Rossio para comprar as camisolas oficiais. Indianos a venderem as não oficiais. Cerveja. Espanhóis. Espanhóis.

A cidade entrou na onda e saiu à rua para festejar com eles. Coisa nunca vista. Os lisboetas felizes com a invasão. Com a desculpa de que estavam a apoiar o Cristiano Ronaldo na manga, foi ver os locais a dançar e em amena convivência com os adeptos. Olé.

E foi ver na televisão os jornalistas a afirmarem com a mais firme certeza que isto nunca poderia acontecer com equipas portuguesas. Que os adeptos nacionais nunca poderiam confraternizar uns com os outros num país estranho sem se travarem de razões. Que estes espanhóis eram um exemplo a que devíamos atentar. Olé.

No sábado às oito da noite estavam todos arrumadinhos no Estádio da Luz. Ou, aqueles muitos que
vieram sem bilhete, arrumadinhos no Rossio ou no Parque Eduardo VII. Durante 120 minutos Lisboa parou.

Ganhou o Real Madrid. Mas ouvi dizer que os Atléticos não deixaram de festejar.

Hoje de manhã abri o Facebook e o que me salta ao olhar logo são críticas. A esses castelhanos que deixaram o Rossio todo sujo. Uns cerdos. Que vão sujar para a sua terra. Nunca os adeptos portugueses deixariam as Puertas del Sol assim. Nunquinha.
Há-de ser sempre assim. Quando passamos muito tempo com espanhóis, deixamos a Padeira de Aljubarrota que há dentro de cada um vir ao de cima e desatamos à paulada. Olé.

Durante um fim-de-semana o sonho luso realizou-se. Lisboa foi capital desta Ibéria danada. Uma península que nos limita e nos aproxima. Depois de séculos a afirmar que do lado de lá da fronteira não vem bom vento, a coisa ia dando em casamento.

Mas descansem os patriotas mais arreigados. Lisboa é nossa. Os espanhóis já estão de saída. Levam a taça, deixam os euros, salero e talvez saudade. Olé.

domingo, 18 de maio de 2014

A Praça.








Qual é a pata direita do cavalo de D. José?


Majestade de todas as praças de Lisboa, a Praça do Comércio é a menina dos olhos da cidade. O meu coração acelera sempre um bocadinho quando avanço por ela. Há uma vertigem avassaladora e de respeito perante o assombro de amarelo e lioz que se eleva sobre o Tejo em direcção ao céu.

Praça das praças, já foi terreiro em frente ao Paço do Rei D. Manuel que resolveu agarrar na Corte e descer lá do alto do Castelo para viver à beira do rio e ver passar os navios que vinham do outro lado do mundo a cheirar a canela, açafrão e pimenta.


Sucumbiu ao terramoto de 1755, para se erguer a mando de D. Sebastião José de Carvalho e Melo, também conhecido por Marquês de Pombal. Foi então que de Terreiro do Paço passou a Praça do Comércio por dela se avizinharem as ruas dos mercadores das mais variadas artes, ofícios e negócios que floresceram com o brilho do ouro das Descobertas. E também porque o rei, não fosse a terra tremer outra vez, mudou o Paço para a Ajuda, zona menos afoita a ondas gigantes.

De frente para o Tejo. O Cais das Colunas impõe-nos a solidão de dois vigias a mirar eternamente o rio. Esperam os navios que vêm do lado da ponte que já trouxeram tesouros e escravos, histórias de marinheiros embriagados e hoje carregam lotes de turistas que vão ali desembarcar em Santa Apolónia para entrarem na cidade do fado e da sardinha e deixarem cá as suas moedinhas. Ou então os cacilheiros que chegam da banda de lá cheios de gente que vem trabalhar para a cidade e logo, ao fim do dia, há-de fazer o percurso inverso e ver Lisboa a afastar-se sob o azul do céu a escurecer.

A Norte. O Arco Triunfal da Rua Augusta onde a Glória coroa o Génio e o Valor. Por baixo portugueses que por obras valerosas da lei da morte se libertaram.
Viriato.
Nun'Álvares Pereira.
Vasco da Gama
Marquês de Pombal, que dizem as más línguas, nunca se deixaria cair no esquecimento.
Com uma arrogância legítima, o arco, quase faz desaparecer os restantes 86 que ondulam na praça. Está ali para honrar as virtudes maiores para ensinamento de todos. Em Latim, claro.
 
A Nascente e a Poente os Torreões são como braços gigantes que nos encerram naquele quadrado de 4 hectares que transpira história. Ali mataram El-Rei D. Carlos e o seu primogénito em 1908, deixando o país mesmo à beirinha da República. Ali pararam chaimites no 25 de Abril de 1974. Ali se fizeram comícios, deram-se concertos, fez-se uma missa papal que parou Lisboa e decretam-se leis nos Ministérios. Já foi parque de estacionamento também.

Agora tem novidades. Tem esplanadas e discotecas. Tem espaço para circular e parar a mirar. Tem gente. Tem vida a circular.


A topar isto tudo, no meio da praça, altivo e real, está o D. José, montado no seu cavalo. Foi ele que mandou reconstruir a cidade depois de 1755. Foi ele que deixou o Marquês de Pombal brilhar e dar nome à Baixa. Debaixo das patas da sua montada, cobras para simbolizar as dificuldades do reinado.
Uma pata da frente torcida no ar. A outra pata direita no chão.
A esquerda.

domingo, 11 de maio de 2014

A Brasileira do Chiado.

Ai Brasileira. Se o Pessoa se levantasse da cadeira, entrasse e pedisse uma bica, faria uma careta e diria: “Isto é um café da treta.”


 A Brasileira do Chiado, ali ao cimo da Rua Garrett é um pilar da identidade nacional. Tudo porque, segundo reza a lenda, ali o café se transformou em bica. E a bica faz o país acordar.
No ido ano de 1905 o estabelecimento abriu as suas portas e passou a vender o “genuíno café do Brasil”, passado no saco, depois por uma torneirinha que o despejava em bica para uma cafeteira, que de seguida ia para o tabuleiro, que o garçon levava para a mesa, onde finalmente era vertido na chávena e chegava aos lábios do cliente. Frio.
Logo começaram a haver queixas. O café começou a ir para a chávena directamente da bica. A escaldar. Daí até se pedir uma bica, foi um saltinho.


Entra alemão. Sai francês. Sai uma bica a 1 euro ali para o freguês.


Em 05 de Outubro de 1910 é fundada a República Portuguesa e com ela chega a liberdade de reunião e debate. A Brasileira fervilha de tertúlias intelectuais. Por ali se sentavam escritores, pintores, sonhadores, jornalistas, lunáticos e outros intelectuais da altura. Em Março de 1915 é publicado o primeiro dos dois números da revista Orpheu que foi planeada entre bicas e cigarros nas mesas do café.


É pr'ó turista e pr'à turista, beba um café deslavado e veja o quadro do artista.


Os artistas sentiam-se em casa. Fernando Pessoa era cliente habitual antes de se mudar para o Martinho da Arcada no Terreiro do Paço. Em 1925 as paredes d'A Brasileira passaram a exibir quadros dos grandes pintores da época. De Almada Negreiros a Eduardo Viana, todos tornaram aquele espaço num museu. Mais tarde, já na década de 70, juntaram-se a eles obras de Carlos Calvet e Eduardo Nery entre outros. Café de arte e de artistas, preserva o ar cosmopolita à moda antiga até aos dias de hoje.


Tantas fotografias causam-me desassossego.


Nos anos 80 foi colocada na esplanada uma estátua de Fernando Pessoa sentado numa mesa. Quem chega ao Chiado senta-se com o poeta e tira fotografias. Pacientemente Pessoa mantém uma expressão calma. Mas a timidez fala mais alto e os olhos dele nunca se arredam do chão.


É entrar e gastar. É a despachar.




Acho A Brasileira um café maravilhoso. É inevitável sentir a vibração da história quando se entra. Sinto-me especial quando me sento e peço um café. Mas logo se quebra a sensação quando o café não é a afamada bica. É antes um café entre o queimado e o aguado. Quando pedimos a conta é
sempre excessiva perante a qualidade do que nos serviram.
Sendo A Brasileira um postal de Lisboa deveria prezar essa imagem. Um bom café faz um bom café. Um bom café agrada ao turista e ao artista. Um bom café é que é uma bica.









domingo, 27 de abril de 2014

Meu herói nacional.

Ó Capitão, meu Capitão,

E agora o que fazemos ao estado a que chegámos?

E agora o que fazemos aos cravos murchos nos canos das armas enferrujadas?
Agora que tanto de ti precisamos para arrancares de Santarém e tomares o Terreiro do Paço.

Agora é outra vez a hora.

Agora.

Quem sairia do Terreiro do Paço, que já estava ganho, e entraria sozinho na Ribeira das Naus com uma granada no bolso para se fazer explodir caso fosse preciso um mártir e encararia os tanques da velha senhora?
Quem agora se recusaria a disparar sobre ti?
Quem subiria ao Carmo e cercaria o quartel?
Quem se recusaria a forçar o Caetano a sair por ser só um capitão?
Quem faria a revolução bonita sem querer nada para si?

Agora.

Agora andas em todas as bocas e põem-te coroas de cravos em monumentos. Esquecidos que não querias glórias nem poder. Querias paz e democracia.

Querias que mais nenhum rapaz fosse carne para canhão em África e que mais ninguém tivesse medo. Querias liberdade.
E, olha, nada foi em vão. Agora posso pôr-me em cima desta mesa imaginária e dizer que precisamos de outro Salgueiro Maia para avançar sem medo e sem ganância.


Ó Capitão, meu Capitão.